Plinio Corrêa de Oliveira

 

Nobreza e elites tradicionais análogas:
diversidade harmônica das classes sociaisdireitos de cada uma delas

 

 

 

 

Catolicismo, n° 520, abril de 1994 (*)

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Cada ano, os habitantes da pequena e pitoresca cidade italiana de Orvieto vestem roupas que usavam seus ancestrais, e revivem, durante a festa de Corpus Christi, a harmoniosa convivência desfrutada pelas classes sociais na Idade Media (Nota: para visualizar numerosas fotos dessa comemoração realizada em 2013, basta clicar aqui)

Numa sociedade bem organizada existe a especialização de funções e a instituição do morgadio, que consiste em atribuir ao filho mais velho a maior parte da herança paterna, a fim de preservar o patrimônio familiar.

Como os senhores estão vendo, todos os pensamentos, toda a impostação de nosso livro está baseada na orientação de Pio XII. Os textos de Pio XII são a base, são o fundamento do que eu digo.

Dentro dessa fidelidade à doutrina ensinada por aquele Pontífice, que é a doutrina tradicional da Igreja, uma das teses mais importantes do livro é a de que, numa sociedade orgânica bem constituída, deve haver uma diversidade hierárquica e harmônica de classes sociais, um intercâmbio de ajuda e de serviço entre elas. Todas devem ser atendidas em suas necessidades para que possam viver segundo sua posição na escala social.

Quem está hipnotizado pelo problema de atender somente aos operários manuais e se torna infenso ao auxílio às outras classes, tem um espírito de luta de classes, um espírito comunista.

Para os comunistas deveria haver uma só classe, a proletária. A ditadura comunista seria a ditadura do proletariado. O governo emanado dessa classe única exerceria sobre toda a população não proletária uma autoridade despótica, que reduziria tudo ao proletariado.

Ora, quem possui essa visão das coisas não compreende a utilidade deste livro.

É evidente que as TFPs são favoráveis a que se ajude a classe dos operários. Mas tal ajuda não deve importar em reduzir as outras classes à mera aparência, e obrigá-las a ter um papel nulo dentro da sociedade. Isto seria fazer o jogo do comunismo, que deseja a extinção delas.

Cada classe tem o direito às condições necessárias para viver como convém a sua posição social. Uma classe de profissionais liberais, de militares, de diplomatas, deve ter os meios suficientes para viver de acordo com a sua condição de profissionais liberais, de militares ou de diplomatas.

Numa sociedade bem organizada, em que há funções diferentes, trabalhos diferentes, responsabilidades diferentes, é preciso que cada um tenha a possibilidade de viver conforme a situação que ocupa.

Pelo princípio da especialização das funções, os que podem menos devem fazer o menos, e os que podem mais devem fazer o mais. Para a sociedade não há vantagem alguma em que um cientista de alto valor seja obrigado a lavar diariamente os pratos de sua própria casa. Existem pessoas com menos inteligência, menos capacidade, menos discernimento das coisas, que podem lavar os pratos melhor que ele. Não é verdade que quem pode o mais pode o menos; muitas vezes quem pode o mais é incapaz de fazer o menos.

A correta observância desses princípios resulta em proveito para toda a sociedade, pois esta lucra quando seus cientistas aplicam seu tempo e suas preocupações em resolver os problemas que lhes são afins, e não sejam obrigados a realizar funções que prejudicariam sua contribuição para o bem comum e que poderiam ser executadas mais perfeitamente por outros menos dotados que eles.

Pois o próprio bem comum supõe uma classe, um padrão, um tratamento, uma situação diversa, conforme a nobreza intrínseca do trabalho executado. Um grande cientista, por exemplo, faz parte de um certo tipo de elite; favorecê-lo é favorecer toda a sociedade e, portanto, também o operariado.

Um certo número de padres e de bispos contemporâneos concebem a Igreja à maneira de um partido trabalhista, ou de um sindicato, que deve favorecer apenas os trabalhadores manuais. Entretanto, a Igreja, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, tem por dever, por missão, favorecer todo o conjunto social e não apenas uma classe, seja ela qual for.

Solar de Mateus, dos Condes de Vila Real (Portugal). Pela instituição do morgadio, solares como esse conservaram-se na mesma família, porque apenas o filho primogênito – o morgado – os herdava

A instituição do morgadio

Uma instituição que havia em outras épocas com a finalidade de manter as famílias - e, portanto, as classes - na posição social e econômica que lhes competia, era o morgadio.

Consistia este em atribuir ao filho mais velho - o morgado - a maior parte da herança paterna, enquanto os outros filhos herdavam apenas uma parcela diminuta. Assim, o primogênito podia continuar no status social e econômico dos pais, enquanto os outros tentavam ganhar a vida de modos e em lugares diversos.

No caso de uma família nobre, apenas o primogênito herdava o título, enquanto os outros filhos eram considerados como fidalgos (filhos de algo).

Assim o patrimônio familiar era preservado, passando praticamente intacto às mãos do filho mais velho. A lei da partilha obrigatória, pelo contrário, obriga a dividir igualmente a herança entre os diversos filhos. Ao cabo de algumas gerações, o antigo patrimônio familiar está liquidado; e a família, como um todo, decai em sua posição social e econômica. São poucas as famílias que conseguem escapar dessa decadência, em virtude de tal lei.

É de se notar que a instituição do morgadio, durante a Idade Média e o "Ancien Régime", existia até mesmo para as famílias da plebe, com modestos recursos financeiros, os quais, entretanto, deveriam ser preservados.

Ao contrário do que parece, a instituição do morgadio não trazia só vantagens para o filho mais velho e só prejuízos para os outros irmãos. Pois qualquer um destes tinha o direito de ser mantido pelo primogênito, em caso de infortúnio pessoal. Os fidalgos, ainda que parentes em grau relativamente distante, sofrendo algo que os impedisse de trabalhar e prover ao próprio sustento, tinham o direito de morar na casa senhorial da família e de aí receberem todo o necessário para si e para sua família, por tempo indeterminado. O patrimônio do morgado era, assim, uma espécie de instituto de previdência social para todos.

O morgadio não era um mar de rosas para o primogênito. Pois a ele competia trabalhar muito para tirar da terra e dos bens que herdara o sustento para todos da família que estivessem em necessidade. Tanto assim que muitas vezes o morgado renunciava ao morgadio e o transferia a um irmão mais moço. Ele preferia ir para a guerra a continuar com o trabalho e a responsabilidade de sustentar os parentes necessitados.

O morgadio era, portanto, uma função honrosa mas pesada. Era também uma instituição justa. Injusto é a família desaparecer como unidade sócio-econômica após algumas gerações, em conseqüência de várias partilhas obrigatórias.

E, como não podia deixar de ser, era muito melhor ficar dependente do morgado ou de seus descendentes, do que dos modernos institutos de previdência social, esta infeliz excrescência do paternalismo estatal socialista.

A Guarda Nobre Pontifícia apresenta a Pio XII os seus votos por ocasião de passagem do ano, através do Comandante do Corpo, Príncipe Chigi della Rovere

Adendo: Patriciado romano e Nobreza romana

O Patriciado romano subdividia-se em duas categorias:

a) Patrícios romanos, que descendiam daqueles que, na Idade Média, haviam ocupado cargos civis de governo na Cidade Pontifícia;

b) Patrícios romanos conscritos, os quais pertenciam a alguma das 60 famílias que o Soberano Pontífice havia reconhecido como tais numa Bula Pontifícia especial, na qual eram citadas nominalmente. Constituíam o creme do Patriciado romano.

A Nobreza romana também se subdividia em duas categorias:

a) Os nobres que provinham dos feudatários ou seja, das famílias que tinham recebido um feudo do Soberano Pontífice;

b) Os nobres simples, cuja nobreza provinha da atribuição de um cargo na Corte ou então diretamente de uma concessão Pontifícia. (Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Editora Civilização, Porto, 1992, p. 27, nota 1).


(*) Excertos da conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, em 4-11-1992, comentando, a pedido destes, a obra de sua autoria Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana (Editora Civilização, Porto, 1992). Sem revisão do conferencista.