Plinio Corrêa de Oliveira

 

O poder judiciário na Idade Media

O Rei, protetor de todos fracos

 

 

 

 

 

 

Auditório São Miguel, Santo do Dia, 18 de junho de 1973 – Sede São Milas

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

 

Ilustração: Coroação de Felipe Augusto (1165-1223), Rei de França. Pintura de Jean Fouquet (1455-1460)

...junho é festa de Santo Efrem, sírio, diácono, confessor e doutor da Igreja, chamado cítara do Espírito Santo, grande devoto da Virgem, lutou contra os hereges.

Para fazer um comentário rápido eu leio uma ficha de medievalização, pequena, e trato dela aqui com os senhores. É um trecho tirado “Ce qu’était le Roi de France - O que era o rei da França”, de autoria de Funk Brentano [1862-1947, foi membro da Academia de Ciências Morais e Políticas, bem como Presidente da Sociedade dos Estudos Históricos , ambas instituições na França, n.d.c.]:

“Um bailio de Felipe Augusto, rei de França, cobiçava a terra deixada por um cavaleiro morto. Em presença de dois carregadores que ele tinha pago, fez uma noite com que o morto fosse desenterrado, perguntou se queria vender a sua terra e propôs-lhe um preço. O defunto nem se mexeu. “Quem cala consente”, declarou o comprador. Algumas moedas são postas em suas mãos, após o que ele é recolocado em seu caixão.

“Com grande espanto, a viúva viu os seus domínios usurpados e ela se dirigiu ao rei. O bailio compareceu, ladeado por essas duas testemunhas que atestaram a realidade da venda. Filipe Augusto percebeu que era trapaça, levou para um canto um dos carregadores e lhe disse em voz baixa “recita-me no ouvido o Padre Nosso”, depois exclamou em alta voz, “muito bem”.

“O segundo carregador, convencido de que seu companheiro denunciara a tramoia, apressou-se a dizer o que sabia. O bailio foi condenado”.

*     *     *

O que a história tem de interessante é o seguinte: Filipe Augusto era um dos mais potentes reis de França, da Idade Média. Ele ganhou a famosa batalha de Bouvines; ele era um grande guerreiro e um homem muito firme.

Acontece que por causa de uma concepção do poder, que havia na Idade Média a respeito do rei, a principal função do rei era uma função judiciaria. Hoje, os Chefes de Estado quase não tem função judiciaria, eles apenas como função judiciaria conservam a faculdade de indultar os presos, mais nada. Toda a matéria judiciaria passou para as mãos de especialistas, técnicos, que são a classe judiciaria.

Na Idade Média eles tinham uma noção a respeito da liberdade, e a respeito do poder régio, profundamente diferente da de nossos dias. Eles tinham a ideia de que a mais alta finalidade do Estado, não era a promoção da economia, mas era a manutenção da justiça e que, portanto, o supremo titular do poder público deveria ser ao mesmo tempo o supremo juiz.

Função judiciária que eles emaranhavam um tanto, porque nessa função judiciária tanto o rei era chamado a manter o equilíbrio justo, entre os vários órgãos que compunham a sociedade – então, feudos, conventos, corporações, universidades etc., quanto o rei era chamado a julgar casos individuais.

E então os senhores veem aqui essa historieta de um grande rei poderoso, que mantém o equilíbrio entre grandes feudos, universidades, igrejas, mantém a harmonia da sociedade em nível judiciário, e de outro lado julga também casinhos particulares.

Então esse grande rei que usa de um subterfúgio próprio de um delegado de polícia comum, aí, usa de um subterfúgio para obter o que o indivíduo conte na realidade qual é o crime que tinha sido cometido.

Os senhores dirão: “mas por que é que um caso desses foi parar nas mãos do rei? Não havia juízes na Idade Média?”

Aqui os senhores encontram outra linda concepção medieval que é a seguinte: o poder judiciário funcionava comumente, de indivíduo a indivíduo, quando tratava de homens comuns; mas quando se tratava de viúvas e de órfãos, o rei podia ser chamado a fazer justiça. Por quê? Porque o rei é o protetor dos mais fracos. Como isto é diferente da imagem que fazem do rei os revolucionários: o rei é o protetor dos nobres contra os plebeus.

É exatamente o contrário! Ele era o protetor dos mais fracos, e por causa disso uma viúva tinha, em muitos casos, a possibilidade de apelar diretamente para a justiça do rei, em que o caso se julgava de modo decisivo.

Os senhores estão vendo que se tratava aqui de uma viúva. Esse cadáver tinha deixado uma viúva, como todos os cadáveres de casados, e a viúva se sentiu lesada, porque em virtude dessa trapaça as terras dela foram ocupadas. O resultado é que ela apela para a justiça real e o rei usa então dessa pequena trapaça e faz com que a manobra se desmascare inteira.

Agora, há uma última nota que é curiosa dentro disso que é o seguinte: hoje em dia, um homem que quisesse fazer essa sem-vergonhice se dirigiria a dois capangas e diria o seguinte: “essa terra vale tanto, vocês vão me assinar um papel de que assistiram fulano em vida me vender essa terra; eu dou a você tanto e a você tanto”. Apresenta o papel. Quando vier por cima, diz: “não, estava comprada a terra, essa é uma viúva desonesta que não quer entregar as coisas que o marido vendeu, então eu entrei e ocupei esta terra, eu estou nos meus direitos, aqui está, as duas testemunhas tal e tal, está acabado”.

Ele recorreu a um artifício diferente. Em vez de ele fazer assinar um documento falso, ele fez uma espécie de negócio falso, e que não deixava de ser um negócio muito repugnante, porque esse cadáver devia presumivelmente estar em estado de decomposição e acabou pondo umas moedas dentro do caixão. Coisa que um ladrão moderno não faria nunca era dar moedas para um morto.

Agora, por quê? A gente vê que, dentro da rusticidade semibárbara dele, ele não quis violar a verdade tão completamente, e procurou um sofisma barato, que não valia nada, mas que aquietava um pouco a consciência dele e das duas outras testemunhas. Donde os senhores veem no ladrão um fundo de senso moral que indica bem como até o ladrão medieval era menos ladrão do que o ladrão moderno. E esse lado é também a meu ver um dos lados pitorescos da narração.

Aí os senhores têm o lado “fioretti” [no sentido de episódio medieval pitoresco, n.d.c.] de toda a coisa: o ladrão com resquícios de honestidade. Depois, a viúva indignada, mas que tem seu apoio no rei, protetor das viúvas; a figura grandiosa do rei; uma noção nova do poder judiciário – nova para o homem contemporâneo -, é o mantenedor do equilíbrio das várias forças da sociedade. Eu vou mostrar daqui a pouco aos senhores como é que se faria na sociedade contemporânea. É o mantenedor das várias forças da sociedade; é o supremo juiz na causa dos órfãos, das crianças, e das igrejas, e de todos aqueles que são fracos.

Então, esse grande rei que sai de suas ocupações e dá uma ciladazinha tão cômica e tão pitoresca, dá um trança-pé e manda depois o pessoal todo para a cadeia.

Aí os senhores têm o resumo da coisa.

E aí está um rápido comentário deste episódio pitoresco da Idade Média. Com isso, nós podemos encerrar nosso “Santo do Dia” e passar para a segunda parte da reunião.


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