Plinio Corrêa de Oliveira

 

Glórias da Santa Igreja Católica

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 21 de outubro de 1978

  Bookmark and Share

 

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.



 

[...] pouca coisa a dizer, a respeito do ponto auge, do ponto mais alto da festa, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Tanta coisa a dizer, tanta coisa a proclamar, um tal acúmulo de pensamentos, de expressões, de recordações, de atos de amor, uma tal união ― se não minha com ela, ao menos dela comigo ― na misericórdia com que ela se digna em penetrar todos os meandros de minha alma, e embebê-los, que eu não teria, quase, coisas a dizer.

Imaginai um vidro de perfume, de um ótimo perfume, de um perfume que fosse um bálsamo.  Imaginai-o voltado para baixo. Podeis esperar que dele fluam em onda todas as massas líquidas que ele contém. Mas o gargalo é pequeno. E é tal a quantidade do líquido que a desproporção entre o gargalo e o líquido serve de tampa. E o percurso pelo gargalo fica...

Assim eu me sinto. O gargalo de minha alma é pequeno para [dizer-lhes] tudo aquilo que sobre a Santa Igreja Católica Apostólica Romana eu teria que vos dizer. Sobre a Igreja e sobre a glorificação da Igreja.

 Mas talvez algumas impressões, algumas idéias, alguns dados colhidos no ar ― em primeiro lugar, sobre o que seria a glorificação da Igreja para depois a descrição da Igreja, talvez alguma coisa disso possa corresponder à vossa expectativa.

Assim, eu passo a falar do que eu imagino a glorificação da Igreja Católica Apostólica Romana. E para dizer logo de uma vez o que eu penso a esse respeito eu devo dizer que a Igreja logo depois da “Bagarre” [um grande triunfo da Igreja e da Civilização Cristã, depois de uma crise, metaforicamente definida na linguagem quotidiana da TFP com esta palavra francesa - cfr. "O Cruzado do século XX - Plinio Corrêa de Oliveira", Roberto de Mattei, Civilização Editora, Porto, 1996, Cap. VII, n. 10).] não se me afigura como cercada ou precedida de dois mil anos de história. Ela se me apresenta como renascida de tal maneira que se tem a impressão que ela está na sua primeira mocidade, e que ela faz como uma rainha que durante dois mil anos carregou um manto cheio e precioso de história. E depois desprende esse manto e recebe de Deus um manto de luz. E caminha para a frente já com outros adornos, outros adereços, com outros esplendores.

A história é um lindo manto; a luz é um manto mais belo do que a história.    

Como é que eu imagino esse manto de luz da Igreja Católica? E por que eu imagino que esse manto de história que deverá ser recolhido aos sacrários, em que a alma de cada um de nós é um sacrário para recolher — esse passado da Igreja que é a alegria da minha vida e que é a razão da minha luta, por que eu imagino que esse passado se desprende para dar origem a uma outra coisa? Tudo isto precisa ter uma explicação. E eu dou a explicação aqui, como eu a imagino.

Eu considero que a palavra glória, como todas as palavras mesmo as mais altas e mais belas do vocabulário humano, ficaram um tanto conspurcadas pela Revolução. Porque a Revolução, por analogia, começou usando-as para coisas muito altas e para coisas menos altas numa analogia ainda legítima, mas não sem perigo. Mas depois passou das coisas muito altas e menos altas para as banalidades, e a palavra glória passou a ser aplicada a coisas banais que já não mereciam a palavra glória.

E como acontece com tudo quanto despenca do muito alto e vai se arrebentando pelo caminho, houve um momento em que a palavra glória morreu. Os senhores vão ver quem é que fala hoje em glória, quem sabe, quem tem idéia exata do que é glória, quem deseja a glória, quem a venera, quem é capaz de lutar por ela e os senhores vêem que o conceito morreu. De tanto cair ele se afundou no atoleiro da banalidade.

Pior ainda do que no atoleiro da banalidade, ele caiu num atoleiro pior, ele caiu na infâmia, na torpeza, na hediondez do inferno.

Para que os senhores possam ter idéia desse trajeto, para que os senhores possam medir bem isso, considerem esse contraste que agora vou lhes narrar. Paris, a cidade luz, está como os senhores sabem, cheia de monumentos, cada um mais belo do que os outros. Os senhores viram o estandarte da TFP desfraldado diante de Notre Dame, com os nossos cooperadores trabalhando ali para a glória de Nossa Senhora. E os senhores tiveram bem a idéia do que é uma glória velha e sempre nova. A velha catedral que não ficou velha.

E a Igreja que sempre deita de si algo de novo ― nesta cidade de Paris eu me lembro de uma casa que há, provavelmente [ainda], na Avenue des Champs Elisées, casa de balas excelentes, de bombons magníficos, balas de licor, balas de frutas, chocolates, açúcares trabalhados como só os franceses o sabe trabalhar ― os senhores se enganam que açúcar é só do açucareiro... era preciso ver o que era o açúcar trabalhado em massa, em pasta, em mil coisas pelo gênio multiforme do povo francês. Depois, ainda com cores delicadas, azulado, verde-pistache, cor-de-rosa, cor de aurora, quantas outras coisas assim...

Esta casa vendia bombons destes, sem ser das maiores de Paris era uma casa excelentíssima ― mas em Paris as coisas excelentíssimas não são das maiores. O maior fica para além das excelentíssimas, e essa casa tinha um letreiro do lado de fora anunciando o nome dele: “La Marquise de Sevigné”. A marquesa literata, famosa do século XVII que sem ter noção disso ― porque ela escrevia sem ter idéia que era uma grande letrada, escrevia cartas comuns à sua filha contanto episódios da vida de todos os dias. Era o “au jour le jour” em que ela contava as coisas naquela facilidade, naquela elegância, naquela leveza com que ela vivia na intimidade de sua família ou na distinção da corte. E em que se podia dizer que no fim de cada frase florescia uma flor, ou então, se encontrava um bombom. Cada ponto final de cada frase era um bombom. Tudo tão doce, tudo tão suave, tudo tão digno, tudo tão cheio de luz. Uma luz de inteligência, mas uma luz de “douceur de vivre” que, verdadeiramente, as cartas da marquesa encantam.

Então se compreende bem que nessa que foi um bombom e que encheu de bombons a literatura francesa, o nome dela merecia dar o nome dela a uma grande “bomboniere” e que a casa dela chamasse “à la Marquise de Sevigné”.

Eu tive, várias vezes, o desejo de entrar em uma casa de bombons da Marquise de Sevigné. E de bombons numa caixa como eu imaginava, escolhendo os bombons mais excelentes e ponto um ou dois de cada espécie dentro da caixa. Para depois trancar-me num quarto de hotel e comer meditadamente. Ponto por ponto, degustadamente. Assim como eu li as cartas da Marquesa, eu degustar os bombons degustados pelo gênio francês. E só não o fiz por uma razão: é que era gostoso demais. E que a coisa gostosa demais não se deve fazer. Porque onde o corpo toma uma parte veemente, há risco do espírito não tomar a parte que lhe compete. Nós não devemos querer dar ao corpo nenhuma delícia porque pouco depois ele pode pedir outra delícia, vai ser perfume no banho, vai ser não sei mais o quê, não sei mais o quê, e é preciso dizer o “não” primeiro, a primeira recusa antes da degustação, para  a gente depois poder não entrar pelas delícias castas, inocentes, é verdade, mas dentro das quais o espírito pode...

Por temperança, eu várias vezes passei diante da “bombonière à la Marquise de Sevigné” e pensei comigo: se eu quiser degustar isto, releio as cartas, não como as balas.

Pois bem, pensando nesses bombons ― e os senhores estão vendo bem que o meu temperamento truculento me faria gostar deles truculentamente, pela descrição que estou dando os senhores estão vendo ― eu pensei nisso quando hoje li uma notícia na “Reunião de recortes”, da tarde, mandada dos Estados Unidos, que verdadeiramente me apavorou. Como presente, está sendo vendida em bombonieres norte-americanas ― mas não pensem que estou fazendo com isso uma comparação entre os Estados Unidos e a França. Não, eu estou comparando dois mundos, eu estou comparando a Revolução e a Contra-Revolução. Esses bombons ainda são contra-revolucionários. O que vou dizer agora é a Revolução. Per accidens, nos Estados Unidos, mas a IV Revolução nasceu na França, como a [segunda]. Então, não é comparação de nações, é apenas constatação de fatos.

Estão vendendo como presente, para dar gentileza, balas em forma de lata de lixo, em que as coisas que se encontram dentro têm aspecto de garrafas velhas deformadas, e de outras coisas que se jogam no lixo. Mas que são comestíveis. A pessoa come o lixo e depois come a lata. O que nos conduz bem longe e bem abaixo da marquesa de Sevigné. Quão longe e quão abaixo.

Outro presente ― presentes pequenos, aliás, vou mandar vir dos Estados Unidos isso e numa boa quantidade, porque acho interessante, até apostólico os senhores mostrarem isso num lugar ou noutro: “olhe aqui, isto é o último grito da moda. Vocês querem essa moda?” E haverá gente que ficará na dúvida, sabendo que é dos Estados Unidos: “quem sabe se convém comer o lixo!”.

Presente de outro aspecto: um caixãozinho de defunto que se abre, e tem dentro um esqueleto todo feito de açúcar. Com outros gostos, eu presumo. E a pessoa querendo comer, come osso por osso do esqueleto.

Os senhores imaginem o contraste entre uma coisa e outra, esta forma de antropofagia simbólica em que se começa comendo bombons com aspecto de osso, em que se come delícias com aspecto de lixo para depois habituar-se ao lixo e viver dentro dele, e os senhores compreendem a enorme diferença que vai entre uma coisa e outra.

Eu devo dizer aos senhores o que vai no fundo de minha alma e por aí eu entro um pouco de esguelha no tema tão delicado que os senhores me deram. Quando eu vi os slides da catedral de Notre Dame eu pensei com os meus botões o seguinte: isto é tão mais alegre, tão mais glorioso, tão mais belo, tão mais sério, tão mais honesto, deixando a alma tão mais independente, tão mais livre, une tanto mais a Deus que se poderia fazer uma regra de três: os bombons da bomboniere a la marquise de Sevigné o que eram em comparação com aquilo? A regra de três se completa hoje no meu espírito: é a mesma coisa o que são hoje para a lata de lixo e as balas em forma de esqueleto.

Quer dizer, o esplendor da Igreja é tão mais belo do que qualquer outra coisa, ele brilhou na Idade Média com uma força, uma alegria, com uma autenticidade, com uma glória tão maior do que a que veio depois do Ancien Régime, que as mais quintessenciadas magnificências do Ancien Régime, aceitá-las renunciando à Idade Média, era dar um passo que ia caminhar necessariamente para comer lixo e osso. Era o começo dum caminho que vinha de uma estrela para uma flor, mas que haveria depois de baixar da flor até o verme.

Porque quem aceita de baixar de uma estrela até uma flor, aceita a fortiori baixar da flor até o verme.

Aí os senhores têm a trajetória. Mas aí os senhores podem compreender também como a palavra glória ficou conspurcada. Como a palavra prazer ficou conspurcada, e como o mundo perdeu ― há séculos já ― a integridade da noção do que era essa glória e esse prazer.

Aí os senhores têm um pouco a idéia do que é a alegria que traz consigo a Igreja Católica, e qual é a glória da Igreja.

Qual é uma outra imagem disso que se possa dar?

É impossível que os senhores tratando uns com os outros, não se tenham visto uns aos outros num momento em que as almas de uns e de outros estão muito abertas para a graça, em que os senhores notam nos outros uma forma de louçania, de brilho que põe nas almas a alegria de ser católico. Nesse momento, os senhores olham uns para os outros e notam como que os outros iluminados por dentro por uma luz diferente. No sorriso, na atenção, na postura do busto ereto, no olhar claro na posição dos ombros inspirada pela esperança, notam alguma coisa que é mais do que qualquer beleza humana. Que é mais do que qualquer alegria humana. Alguma coisa que fala do Céu. É impossível que não tenham notado isto.

Isto são as belezas internas espirituais da Igreja Católica, das quais poucas almas têm noção hoje em dia, mas que são mais bonitas do que tudo que se possa imaginar. E se compreende, porque a doutrina católica é esta. Nesta terra, a obra prima não é o panorama, não é a flor, a pedra preciosa, não é nem sequer a obra de arte, a obra prima é a alma humana. Alma humana que o Espírito Santo trabalhou, que Ele modelou como quis, que Ele cinzelou para ficar à imagem e semelhança dEle, e que brilha com a beleza dEle. Esta é a verdadeira obra prima de Deus nesta terra.

E quando nós começamos a rememorar em que a Igreja floresceu ao longo dos séculos, não se pode imaginar coisa mais bonita do que isso.

Eu me lembro ― é pena, eu não sabia que o tema fosse tão diretamente esse ― de um quadro cujo autor é pouco posterior a Sta Teresa de Jesus, a grande, que representava a santa vestida com o traje simples das carmelitas: um rosto bem feito, bem conformado mas comum; a idade já começando a caminhar para a velhice, e portanto começando a caminhar para o ocaso. Mas a cabeça tão bem-posta sobre o pescoço, o pescoço emergindo com tanta distinção nos ombros, o olhar olhando para um ponto indefinido, com tanta naturalidade e com tanta fixidez, que a gente dizia: alma é isto! Esplendor é isto! Ela é capaz de olhar para o mais alto pontífice, para o mais majestoso rei, ela é capaz de olhar para um anjo assim, de frente e com calma, sem se apavorar, respeitosa, sem desafiar nem fazer arrogância, mas com naturalidade porque habita nela uma tal grandeza que ela tem algo de comum, algo que é um nexo com aquilo que podemos imaginar de mais elevado. É a alma da grande Santa Teresa.

Quando nós pensamos na alma de Santa Teresinha do Menino Jesus, tão diferente na aparência ― se Santa Teresa tinha em si o pulchrum espiritual de todas as guerras da Reconquista, Santa Teresinha não tinha na sua face o pulchrum espiritual das cruzadas francesas; ela tinha, antes, o pulchrum espiritual de todos os charmes e de todas as belezas do “doux pays de France” [doce país de França]. Traços extraordinariamente regulares, esteticamente muito bonitos, com nada entretanto que falasse daquela força de Santa Teresa de Jesus, a não ser dois grandes olhos dentro dos quais, se olhando, se percebia o mar. Um mar plácido, é verdade, mas cujos movimentos podiam influir na rotação da terra.

Há fotografias de Santa Teresinha doente, já tuberculosa, deitada numa cama, no claustro, caminhando para a morte e então opressa de dores: o olhar continua o mesmo. Depois, eu quereria ver o olhar dela naquele momento de infortúnio e provação em que ela ouvir conversarem perto da cozinha, que era perto da cela onde ela agonizava e uma irmã dizendo: “nossa irmã, Teresa do Menino Jesus, vai nos deixar dentro de pouco, a morte vai levá-la, quero só saber na Circular que nossa superiora fará a todos os Carmelos, o que vai dizer desta coitada que não fez nada na vida”. E ela estava pronta para se apresentar diante de Deus.

Não é nisso que eu penso. Eu penso no último lance quando ela, no momento de afundar nas trevas da morte, teve um êxtase, levantou-se e deu um brado de amor e de glória e depois caiu morta. Eu queria vê-la nesta hora. Nesta hora é que eu compreenderia por inteira a Santa Igreja Católica vibrando dentro dela.

Ouve-se falar das Cruzadas. Como é bonito nós imaginarmos as Cruzadas que passam, Godofredo de Bouillon, todos os seus cavaleiros garbosos, com couraças, com elmos, com plumas, percorrendo as estradas, cantando canções religiosas, no meio da poeira da estrada transformada numa neblina de ouro para circundá-los. Como tudo isso é bonito.

Mais bonita é a alma valente que quer quebrar o adversário, que quer abater os opositores, que quer vencer para restaurar o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os cruzados que chegando a Jerusalém e viram a cidade santa que iam conquistar, tiveram verdadeiros êxtases religiosos. Se levantaram do chão ao ver a cidade onde Nosso Senhor tinha morrido.

Estas almas têm luz. E é por causa disto que até hoje é impossível a gente falar a respeito de Cruzada sem que a palavra venha seguida de uma luz, de um reflexo sacral que nada poderia adequadamente descrever e que eu diria: é tão impossível descrever que quem viu, viu; quem não viu, não viu. Não há descrição possível do lampejo que a palavra “cruzada” deita de si.

Os senhores poderiam tomar todas estas coisas juntas, poderiam imaginar uma alma que fosse feita de todas estas almas e é isto a Igreja Católica, porque a Igreja Católica tem um lúmen que se individualiza nas almas destes, daqueles, daqueles outros, mas que continua inteiro nela, que o lúmen do Espírito Santo, que é a alma da Igreja Católica.

Então, os senhores poderiam somar tudo isto, imaginar a superposição de tudo isto, e então os senhores teriam a idéia do que é a Igreja Católica.

O que é esta superposição?

Para os senhores fazerem um exercício desta superposição eu lhes recomendo que prestem atenção nos vitrais da nossa capela [e] da Sala dos Alardos e da sala em que eu trabalho, em cima [na Sede do Reino de Maria].

Os senhores notarão que é o contrário dos vitraisinhos comerciais que se veem por aí. Os losangos não são da mesma cor. São desiguais. E às vezes lado a lado, há losangos bem diferentes. Não houve erro, e muito menos houve “zupi” [esquecimento, n.d.c.].  É que aquela desigualdade é feita para um efeito de olhar. O olhar, porque tem necessidade de uniformidade nesse gênero de coisas, faz uma espécie de superposição, e tira dali um amarelo ouro síntese que involuntariamente até os olhos dos senhores terão fabricado.

De maneira que tal que se alguém dissesse aos senhores “são de uma só cor os vitrais da Sede do Reino de Maria” eu creio que os senhores instintivamente diriam que sim, embora tenham notado que não. Mas é que aqueles matizes diversos se sobrepõem um ao outro, e formam no interior da alma um ouro amarelo que é um ouro amarelo em última análise composto pelo espírito de cada um dos senhores. E que o espírito de cada um dá um matiz próprio. Se fossemos pintores não pintaríamos exatamente o mesmo ouro amarelo, cada um adapta com as cambiâncias que quer, e que forma a beleza daquilo.

É esta superposição que seria preciso fazer para a gente ter uma idéia da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Quer dizer, tomar por exemplo uma mártir jogada pelos cornos de um touro para o ar, caindo na arena e toda ferida e cheia de dor, compondo o vestido para as partes de seu corpo que não devem ser vistas não serem consideradas. Em que o amor à pureza passa por cima de toda a dor; o amor à compostura, decência, à linha, passa por cima de todo o sofrimento. E em vez de gemer, cuida da linha e cuida da castidade. Quanta coisa está nisso.

Os senhores tomem Santo Inácio de Antioquia do qual já tenho falado tantas vezes: vem por cima delas as feras mas não avançam desde logo, ele abre os braços em forma de cruz e diz: “Senhor meu, Jesus Cristo,  que seja minha carne e meu sangue como é o trigo, o trigo é amassado pelos moendeiros de maneira a se tornar a farinha de que é feita a hóstia que vai ser Vós. Oxalá os dentes destas feras me esmaguem, me triturem para que meu corpo tenha uma semelhança com Vós”. Vem as feras em cima dele, ele se entrega com a alegria de saber que ele repete o martírio de Jesus Cristo.

O que dizer do reflexo heróico dessa alma? Não se tem o que dizer. Está bem, os senhores pensam que as glorias da Igreja chegaram ao auge... elas estão no seu início. Pensem em Santo Agostinho, na sua velhice, em Hipona, foi passar uns dias em Cartago, perto do mar. As ondas do Mediterrâneo vão e vem, Santo Agostinho está velho, uma barba grande desce do queixo dele à maneira de cascata, os seus cabelos ficaram brancos; seu olhar, pelo contrário, cada vez mais negro, mais carregado, vendo ao longe horizontes cada vez mais amplos e compondo aquelas orações que estão nos Solilóquios de Santo Agostinho, das quais cada uma leva a gente diretamente...

Aquelas invocações dele, “ó meu Deus, onde estáveis quando pensáveis...” com aquela majestade em que a voz dele é um eco da voz de Deus em que se percebe o pensamento dele dizendo coisas siderais a respeito das coisas menores.

Eu me lembro [do livro das “Confissões”] dele que eu lhes aconselho muito a ler, as exclamações interiores que eu tinha quando ia colhendo as jóias do texto. Assim, quando ele conta que ele era pequeno e que roubava frutas no jardim do vizinho ― porque ele conta todos os pecados dele e desde que era pequeno ― e que fazia isto não tanto para comer as frutas como pela alegria de fazer uma coisa ilegal.

E eu que tinha visto tanto disso em torno de mim, me deparo com esta exclamação magnífica: ó Deus, Deus meus, "tantillus puer et tantus peccator" [Confissões, Livro XII, 12] ― isso em latim tem uma ressonância especial. Ó meu Deus, menino tão pequeno e já grande pecador.

“Tantillus puer”... “puer” é menino. “"tantillus puer et tantus peccator"...

E depois continua nas considerações dele até o momento augusto da conversão dele; as horas que ele entrava na sala onde trabalhava Santo Ambrósio, um bispo que é glorificado porque meteu medo no imperador Teodósio. Mas fez muito mais do que isso, ele encheu de admiração o grande Santo Agostinho. Teodósio... “tantillus imperator”.

Santo Agostinho, ele mesmo conta que como Santo Ambrósio era muito ocupado e não podia atender as pessoas tanto quanto as pessoas queriam ― ele tinha o tempo dele cheio ― ele permitia que algumas pessoas entrassem na sala dele enquanto ele trabalhava e ficassem olhando-o trabalhar. Ainda não católico, ainda não convertido mas fascinado pela pessoa de Santo Ambrósio, entrava passo a passo e ficava olhando.

E Santo Ambrósio que tinha diante de si quem seria maior do que ele ― não digo como santo, porque não podemos comparar santo com santo, mas como intelectual certamente. São ambos doutores da Igreja, mas Santo Agostinho sustentando comparação com São Tomás... portanto, sustentando comparação com o incomparável. Os senhores compreendem, Santo Ambrósio não é isso.

Bem, Santo Ambrósio trabalhando, nem percebia que Santo Agostinho entrava e ficava olhando para o homem. Como nós gostaríamos de olhar para Santo Ambrósio. Livros daquele tempo, daquele tamanho, pergaminho, mesa cheia, sala nobre e séria como eram as salas romanas mesmo daquele fim de Império, Santo Agostinho olhando Santo Ambrósio. E da luz de Santo Ambrósio nascendo na alma de Santo Agostinho um lúmen maior, mais ou menos como da chama de uma vela pode nascer o fogo de uma fogueira.

Nós olhamos essas duas almas que se consideram. E mais para trás um pouco, sem que Santo Agostinho percebesse, nós podemos imaginar de pé, Santa Mônica, a mãe dele, olhando e admirando Santo Ambrósio, estudando o efeito da graça na alma de Santo Agostinho e rezando para que tudo quanto houvesse em Santo Ambrósio passasse para Santo Agostinho.

Mas mais alto, havia Nossa Senhora atendendo as orações de Santa Mônica. E pedindo a Deus que desse a Santo Agostinho mais do que Santa Mônica ousava pedir. Que não desse a Santo Agostinho apenas todo o lúmen de Santo Ambrósio mas que fizesse dele um dos maiores lumens da Igreja no decorrer dos séculos. Que cena! E se olhássemos nesta hora para Santa Mônica o que haveríamos de dizer?

Mas se olhássemos para Nossa Senhora! Nossa Senhora que um dia vamos olhar face a face... aí, então, o que dizer? Aí calam-se todas as palavras e é apenas a música dos anjos... majestosa, esplendorosa, amorosa... e, o que nos impede de pensar que por cima do cântico dos anjos vem o cântico de Nossa Senhora cantando Ela o Te Deum ou o Magnificat. Aqui calem-se todas as línguas. Diz-se isso em latim assim “hic taceat omnis lingua”: aqui, toda língua se cale.

Mas, os tempos correm, o Império Romano cai num abismo de vergonha e de indecência. Os bárbaros invadem o império ― e eu destaco apenas uma alma que emerge deste turbilhão de agitação, de erro e de crime que é a barbárie, mas emerge ordenada, sacral, nobre e digna como todos os séculos que haveriam de nascer dela: Santa Clotilde, esposa de Clovis.

Eu não sei porque, tenho a impressão que quando a gente pensa em acontecimentos daquela época dava para pintar Santa Clotilde. Dava para imaginar como ela era: de uma altura acentuada, avantajada e, entretanto, delicada, com os traços à maneira de um monumento. Monumental de traços, monumental de porte, monumental de seriedade, toda agrado e suavidade nos gestos e na voz, toda majestade e dignidade no estupendo silêncio.

A gente vê perto dela, com a bigodeira formando trança, facilmente bêbado, agitado: Clovis. Ela, descendente de bárbaros como Clovis mas nela pousara o Espírito Santo, pousara o espírito da Igreja e tudo nela se transformara.

Eu imagino que Santa Clotilde era uma catedral, e quando os mortos ressuscitarem e nós nos virmos face a face, se me for dado isto, eu procurarei entre os que ressuscitaram, logo entre os primeiros eu desejo ver Santa Clotilde. E eu penso que a reconhecerei quando eu encontrar uma rainha com fisionomia meio de castelo e meio de catedral. Esta é a grande Santa Clotilde. Séria, sábia, tendo solução para tudo, amável para tudo, entrando facilmente nas coisas mais miúdas da vida doméstica, mas capaz de governar um império se assim for [necessário], e fazendo uma coisa mais difícil do que isso: é converter e governar a alma de um rei insuportável.

Os senhores conhecem aquela exclamação de Clovis quando ele percebeu que a batalha estava sendo perdida: eu prometo ao Deus de Clotilde e eu me converto se nós ganharmos a batalha. Os senhores estão vendo como ele achava Clotilde e Deus... e como Clotilde conduzia a Deus.  Esta Clotilde tão extraordinária, tão séria, tão digna, foi ou não foi um sol no dia em que Clovis foi batizado?

Os senhores sabem que Saint Remy, bispo de Reims, preparou tão bem a catedral de Reims ― que não é a catedral magnífica de hoje, gótica, era uma igrejola romano-bárbara ― preparou tão bem a catedral que Clovis quando entrou na igreja acompanhado por ele, perguntou ao santo: meu pai, este será por ventura, o reino dos céus?

Os senhores sabem que quando ele ia batizar Clovis desceu do céu uma pomba que vinha carregando no bico uma ampola e nessa ampola o óleo para ser sagrado o primeiro rei cristão.

Eu gostaria de imaginar não a cara de Clovis, porque Clovis não foi santo, mas eu gostaria de imaginar a cara de Saint Remy e a cara de Santa Clotilde quando um bater de asas...  vem uma pomba diferente de todas as outras trazendo no bico uma ampola e dentro da ampola um óleo para batizar o primeiro rei cristão. Era a cristandade que nascia de um milagre. A majestade, a modéstia e o recolhimento de Santa Clotilde.

Eu imagino Saint Remy de mitra, já venerável também, os braços ligeiramente trêmulos e diante do milagre dizendo alguma dessas palavras extraordinárias que os santos têm nas grandes ocasiões, pegando a ampola, abrindo e batizando Clovis. Clovis, comovido e sem ter o que dizer. Era todo o Ocidente que estava sendo batizado.

Isto só! Isto é lúmen da Igreja. Mas vejam bem, não é só lúmen da Igreja isto como se passou, é também um lúmen da Igreja entre nós porque nós recompomos a cena porque o espírito da Igreja vive em nós e nós nos deliciamos com isto porque a Igreja vive em nós. E no momento em que todos estamos juntos louvando estes fatos pode-se dizer que é o próprio Espírito Santo que louva a sua própria obra e conta a sua grandeza porque quem fala tocado pela graça fala tocado pelo Espírito Santo. Quem ouve movido pela graça, ouve movido pelo Espírito Santo.

Então, imaginando esta cena, nós reproduzimos algo desta cena aqui. E os senhores e eu comentando o fato, alguma coisa desta luz chega até esse barracão dos fundos da rua Martinico Prado [onde estava sendo feito este “Santo do Dia”, n.d.c.]. Celestes obstinações de Deus que manda em tudo.

Mas, o que tem de belo em Santa Clotilde é que com ela nasce a cristandade, nasce a Europa cristã. E tudo quanto veio depois me parece nascido da graça à qual Santa Clotilde teve a coragem de dizer sim.

Com efeito, os senhores vão ver Carlos Magno, que veio pouco depois, tão maior do que Santa Clotilde... ele o que é? Ele é a copa da árvore da qual Santa Clotilde foi a raiz. Ele não era descendente dela, não era da mesma dinastia. Pouco importa, era filho da mesma graça. E séculos depois Santa Joana d´Arc haveria de ser outra versão de Santa Clotilde, apresentada de outro modo, de outra forma, com todos os esplendores que os senhores conhecem.

No Sacro Império Romano Alemão, Santo Henrique e Santa Cunegundes... o nome Cunegundes a meu ver é até um nome feio, não acho nome bonito ― se algum dos senhores tem alguém na família chamada Cunegundes, me perdoem, mas não é um nome cuja musicalidade me seduza. Mas eu os imagino, os dois, sentados em tronos vizinhos, com majestades vizinhas, ela apenas a versão feminina da grandeza, seriedade e estabilidade dele. Imagino anjos carregando dísticos em torno deles dizendo: Sacro Império Romano Alemão, com tudo que se lhe segue, com todo esplendor que veio depois.

Bem, os senhores poderiam tomar isso, mas tomar ao lado disso as ordens religiosas que foram florescendo, os beneditinos com aquele recolhimento de que os senhores tem exemplo no São Bento ― tem mais do que um exemplo, tem uma degustação no São Bento.

Os senhores poderiam, depois dos beneditinos, considerar os cartuxos na sua solidão magnífica, no seu silêncio inquebrantável, em montanhas, em panoramas que pareciam inóspitos, cravando mosteiros magníficos, que era um desafio às recusas da natureza e garras deitadas na montanha. E ali se pondo a rezar diante de Deus e sem mais nada. No grande silêncio cartuxiano, São Bruno o fundador.

Depois os senhores podem imaginar mais estes, e mais aqueles. E São Francisco de Assis que gostava de entreter os seus frades com a história da Cavalaria; e São Domingos que era o martelo dos hereges...

Os senhores podem pôr toda a coorte dos santos que se seguem, e façam com isso um vitral com todos aqueles matizes e que resulte uma cor única, e aí os senhores têm o que é o verdadeiro colorido da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Os senhores olhem para o Santo Sudário e imaginem o seguinte: se aquelas pálpebras se abrissem e aquele olhar nos fitasse, de dentro desse olhar haveria de sair tudo isso, mas em proporção infinita.

Aí os senhores podem compreender o que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Pois bem, os senhores me dirão: mas Dr. Plínio, este é o manto de dois mil anos, é o manto do passado, o senhor descreve esse manto na hora em que o senhor diz que a rainha se desprende desse manto... não era antes o caso de conservar esse manto?

E eu digo: não. O que eu entendo por isso? É que a Igreja estará tão jovem, tão renovada, nela brilhará tudo isso não mais apenas sob a forma de um passado, mas como lúmen de um futuro magnífico que virá. E o que está diante dela vai brilhar mais ainda do que está por detrás dela. E os séculos que virão depois de grandeza, de santidade e de fulgor, esses séculos ― é São Luiz Grignion que diz ― estarão para os séculos anteriores como as mais altas árvores estão para os arbustos ou até para os gramados.

Então, tudo isso é apenas a pré-história. E a pré-história fica apagada pela primeira explosão da história nova, a primeira irradiação de não sei o que... por que, como pode ser isso para ser tudo isto e ser tão mais do que isto?  Que estes sóis de que eu falo aos senhores parecerão ― não sei, admiráveis bolhas de sabão em comparação com os astros que virão! É a vitória do que ficou para trás. E é o esplendor do que vem para a frente.


Bookmark and Share