Plinio Corrêa de Oliveira

 

Sor Josefa Menendez descreve o inferno que

ela mesma viu

Assunção de Nossa Senhora

 

 

 

 

 

 

 

Auditório São Miguel, sexta-feira, 15 de agosto de 1980, Santo do Dia

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

 

Eu devo continuar tratando de outra matéria e retomando, portanto, o fio das exposições que eu vinha fazendo anteriormente. Mas, como a ponta do fio das exposições anteriores se perde na poluição, na fuligem, na bruma e no caos de São Paulo, seria bom, talvez, embora seja muito tarde da noite, que eu faça antes uma pequena "mise au point" para depois prosseguir.

A "mise au point" é a seguinte: eu já tenho desenvolvido várias vezes aos Srs. a afirmação de que a grande força da Revolução em nossos dias não está propriamente em que os setores de opinião que empurram para frente a Revolução - sobretudo se a considerarmos estritamente no sentido de Revolução Comunista, a III Revolução e depois a IV - que os fatores que empurram para frente essa Revolução sejam muito fortes.

Mas é que a Revolução conseguiu colocar em estado de indiferença a grande maioria dos que não são comunistas, e esse estado de indiferença faz com que os comunistas possam caminhar desembaraçadamente, livremente, enquanto nós temos o caminho difícil e pedregoso diante de nós. Tanto mais quanto nessa imensa massa de indiferentes, eles são indiferentes mais ou menos para tudo... exceto para o risco de perder a vida. Isso eles não querem. De nenhum modo eles querem correr o risco de perder a vida.

Agora, nós corremos o risco de nos contagiar com a indiferença, e é para evitar esse contágio que eu tinha pensado em fazer para os Srs. algumas conferências sobre a indiferença.

E a tese que eu desenvolvia é que, segundo a doutrina católica, essas ações a que o mundo hoje é tão indiferente, para não dizer complacente, Deus odeia essas ações. Ele não é indiferente. Vamos dizer, por exemplo, um casal que esteja se debatendo em luxúria aqui na esquina - se vê isso por todo canto... Passam os automóveis indiferentes àquilo, mas Deus não é indiferente. O olhar do homem indiferente pousa naquilo e não censura, mas o olhar de Deus pousa naquilo e execra e destina às chamas eternas do inferno para aquilo, caso não se arrependa.

Mas mais! Na economia comum da graça, salvos os casos excepcionais, o gargalo que leva os homens ao Céu, à medida que se torna mais longo, vai se afunilando. Quer dizer, à medida que o homem vai pecando, insistindo no caminho do pecado, a possibilidade da misericórdia vai minguando. E quando há uma torrente de pecados cometidos numa cidade, o normal é que haja uma torrente de almas que caem no inferno. Eu não quero dizer com isso que cada pecador vai para o inferno, mas quero dizer que o número de pecadores que vão para o inferno aumenta enormemente por causa do número de pecados. O gargalo vai se tornando cada vez mais extenso.

* Deus é sumamente intolerante com o mal e sumamente complacente com o bem

E então era meu propósito mostrar aos Srs. essa posição de Deus de suma intolerância para com o mal e de suma complacência para com o bem, até onde chega, e começar pelo mal.

Alguém dirá "Dr. Plinio, isso é seu espírito negativo, porque a gente antes deve conhecer o bem, para depois medir o mal; antes a gente deve conhecer a verdade, para depois caracterizar o erro. Por que o Sr. não começa pelo Céu? Por que é que o Sr. não descreve a complacência de Deus para com o homem virtuoso, para depois tratar do inferno?"

Em obediência à palavra de Deus: "O temor de Deus é o começo da sabedoria!" E se estou começando, começo por onde a sabedoria começa e, portanto, eu hei de começar a falar do inferno que incute temor, está acabado.

São Bento, para atrair os seus noviços para a regra gloriosa, para atrair para essa regra os noviços, começa a regra assim: "Vinde filhos, ouvi, eu vos ensinarei o temor de Deus." É por onde ele atrai, ensinando o temor de Deus. Então nós havemos de falar alguma coisa sobre o temor de Deus.

Bem, e eu tinha começado por dar uma reunião a respeito do inferno, em que eu tinha desenvolvido esse ponto tão claro, tão evidente, mas tão pouco costumeiro, que eu julguei necessário consultar D. Mayer pelo telefone sobre se realmente isto era assim segundo a teologia abalizada, limpa e corrente. Esse ponto pode ser dividido em três:

1º) Deus, criador do Céu e da terra, das coisas visíveis e invisíveis, "visibilia et invisibilia", criou o inferno. E Ele deitou Sua Sabedoria e Seu poder infinitos para criar o inferno, assim como para criar o Céu e o universo no qual vivemos.

2º) O inferno é mantido por Deus na existência constantemente, porque do contrário o inferno desapareceria, como o Céu, como a terra, como todos os que Deus criou. Deus cria e mantém no ser. Se Ele nos retirasse nosso apoio, nós "catastrofaríamos" - se o verbo fosse legítimo - dentro do nada.

3º) Deus, que é o motor imóvel, move tudo quanto se move no inferno; e o movimento contínuo do inferno, na rotação eterna, dentro dos tormentos onde no inferno há um acontecer incessante, terrível e esmagador do inferno, é Deus que move isto. De maneira que Deus a todo momento está comunicando ao inferno aquele movimento, aquele acontecer e aquele atormentar por onde o inferno é um perpétuo lugar de dores totais.

Mais ainda: pelo mesmo princípio pelo qual Deus disse que sem o conhecimento dEle não cai um fio de cabelo da cabeça de um homem, nem um passarinho cai morto de uma árvore, pelo mesmo conhecimento Deus tem noção de cada tormento, cada fragmento de tormento, se se pudesse dizer cada minuto de tormento, de um condenado no que consiste, e Ele quer aquilo e Ele está movendo aquilo, está sustentando aquilo, Ele está castigando continuamente. Deus é, para os perdidos, continuamente o verdugo que castiga, enquanto Ele é também, para os que estão no Céu, o Rei celeste e divino que enche de esplendor e de encanto.

E até aí eu gostaria de me antecipar um pouco sobre o que eu vou dizer a respeito do Céu. Virão as conferências sobre o Céu no momento oportuno, se Deus quiser, mas eu me adianto um pouco.

Vou dizer o seguinte: eu fui habituado à ideia, que não era explicitamente lecionada assim, pelo menos me ficou na imaginação, de que Deus é para nós como que uma pessoa - não é um caleidoscópio, é uma pessoa espiritual, espírito puro, absoluto e infinito - mas que nós nos portamos face a Ele mais ou menos como uma pessoa se porta diante de um caleidoscópio rotativo que a pessoa não tem que mexer. A pessoa tem uma cadeira cativa e fica olhando aquele lindo caleidoscópio jogando as pedras eternamente. Não é isso não!

* Assim como Deus atormenta no inferno os precitos, Ele acaricia no Céu e inebria de carícia os eleitos

Assim como Deus atormenta no inferno os precitos - eu vou dizer daqui a pouco aos srs. como -, Ele acaricia no Céu e inebria de carícia os eleitos; e Ele fala aos seus eleitos, e lhes diz coisas, e mostra de Si coisas que os deixariam ébrios de alegria, se no Céu pudesse haver ebriedade. Quer dizer, é o afago contínuo, é a palavra de bem-aventurança, de afeto, a carícia incessante, sempre igual e sempre diversa, e que nunca termina. Ele disse de Si mesmo: "Eu serei Eu mesmo a vossa recompensa demasiadamente grande".

Os Srs. percebem bem como são simétricos os dois pontos e como nós vemos bem aí como Deus está nos antípodas de ser indiferente. Ele, pelo contrário, ama intensamente o que é conforme a Ele, e execra com intensidade não menor o que é contrário a Ele.

Os Srs. dirão: "Mas eu não ouvi dizer isso, que Deus atormentasse, eu ouvi dizer que os demônios se atormentam uns aos outros".

É verdade que Deus age pelas causas segundas. Mas os demônios atormentam porque Deus dispôs as coisas de tal maneira que eles fazem isso "ex natura própria", como atormentados que são, mas segundo o plano dEle e porque Ele quis que fosse. Eles, contra a própria vontade, executam a vontade de Deus, atormentando-se a si próprios indefinidamente, infinitamente, num tormento que não tem fim.

A gente vê a ação de Deus nas causas segundas e como Deus - isso é o pequeno desvio, mas é um desvio de momento - como Deus é cioso de usar as causas segundas para todos os seus planos e raramente intervém de um modo direto e em pessoa.

Os Srs. veem numa frase interessante de Nosso Senhor por ocasião da prisão dEle, quando Ele disse: "Se Eu quisesse, Eu pediria a meu Pai que mandaria legiões de Anjos para Me defenderem". Como quem diz: "Eu não quero e Me entrego aos Meus algozes porque chegou a hora da Redenção". Mas o interessante é que, no flanco desse ensinamento essencial, Ele dá um outro ensinamento, é que se Deus quisesse salvá-Lo, Ele, que é o Homem-Deus, se Deus quisesse mandar salvá-Lo não intervinha diretamente, mandava vir Anjos.

No relacionamento Deus-Anjo, esta frase abre uma luz porque era Ele. Em Nosso Senhor Jesus Cristo os Srs. sabem que há uma só pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. Era, portanto Deus que estava sendo preso ali; mas Deus preso que poderia determinar uma descarga de esplendor e de cólera, perto da qual seria uma brisa ridícula - comparação até microlótica - à pior bomba atômica. Deus para reprimir aqueles canalhas, manda vir Anjos...

* Profecia de Sofonias: a cidade nauseabunda onde o bem e o mal coexistem em seus habitantes malditos

Aí os Srs. veem como Ele age pelas causas segundas, e qual é o papel dos Anjos na economia do universo. Qual é também o papel dos homens, enquanto devendo se ajudar para a salvação. E quanto Deus quer que os Anjos da guarda nos ajudem e que nós nos ajudemos uns aos outros. Todo jogo das causas segundas fica esplendidamente entrevisto aí, através disto, que eu digo apenas à margem para nós voltarmos ao tema do inferno.

Então, eu deduzi isso das considerações gerais e lembrei aos Srs. a profecia de Sofonias a respeito da cidade nauseabunda dos indiferentes, que era uma cidade na qual o bem e o mal, a verdade e o erro coexistiam em estado de indiferença na alma dos seus habitantes malditos; cidade que ele compara a uma cidade inundada de excrementos, horrorosa etc., etc., etc. E nós caracterizamos isso: a "Cidade de Sofonias".

E então, para evitar que nós caiamos nesse espírito microlótico, segundo o qual nada é grande, nada é grandioso, nada produz grandes consequências, nada repercute no Céu, não existe um Livro da Vida onde as nossas menores ações são escritas e onde vai sendo posto a débito ou a crédito tudo quanto nós fazemos, mas tudo é “pedestre”, tudo é insignificante e tudo é prosaico, para acabar com isto nós tínhamos começado por olhar e por considerar as grandezas terríveis da cólera de Deus no inferno. Aí estávamos.

E a julgar pelas reações fisionômicas, eu tenho a impressão de que não foi inútil esta repetição, de tal maneira nós com facilidade deixamos evolar-se as coisas, volatilidade que indica algo de nossa própria indiferença. Porque essas são das coisas que, quando a gente não tem uma tendência à indiferença, a gente não esquece.

Eu ouço um silêncio especial... Quão justificado é esse silêncio...!

Eu devo agora passar dessas considerações, que dão fundamento doutrinário ao texto que vou ler agora, devo passar a ler um trecho de sóror Josefa Menendez a respeito do inferno.

Como várias almas privilegiadas - a Madre Mariana de Jesus Torres, do convento da Imaculada Conceição de Quito, no tempo do Equador colonial, por exemplo - sóror Josefa Menendez (1890-1923), religiosa espanhola, creio que do fim do século passado, em todo caso em nosso século também, sóror Josefa Menendez, morta em odor de santidade, foi levada ao inferno, mas realmente ao inferno. E conheceu os tormentos todos do inferno. E voltando, teve a ocasião de descrever para uso dos homens.

E então é uma dessas descrições que eu vou ler aqui para os srs. ouvirem. É uma descrição que ela fez do que ela sofreu de terrível para salvar almas, para expiar por almas, mas também para servir-nos de lição, para compreendermos como Deus não é indiferente ao pecado, e como nós insultamos a Deus quando nós somos indiferentes ao pecado, como a indiferença é uma atitude de alma que provoca desamor a Deus.

Por exemplo, eu vou andando pela rua, vejo um casal que está pecando e eu passo indiferente. A pergunta é: "Mas como você fica indiferente quando aquilo é pecado?" Resposta: "Vê-se por todo lado! Então como é que eu vou a todo momento ficar indignado? Eu não posso viver indignado"...

* Objeção do indiferente: "como posso passar o dia inteiro indignado?"

A gente conversa com essa mesma pessoa no fim do dia e pergunta: "O que é que você sofreu hoje?" E a pessoa conta cinco feridas de amor-próprio que ela levou durante o dia, e que ela amargou o dia inteiro.

Quer dizer, todo o dia nós somos espicaçados em nosso amor-próprio, todo o dia. Isso nós não esquecemos! E a isso nós não somos indiferentes. Deus é insultado à toda hora de um modo brutal, não com pequenas feridas de amor-próprio, mas com pecados brutais. Isso nós esquecemos! Nós não vamos dizer que não somos indiferentes a Deus, não é possível! Tenhamos pelo menos a honestidade de bater no peito e dizer: "É verdade, eu não quero que se pise na ponta de meu pé, mas eu pouco me incomodo que se tire uma hóstia do sacrário e se jogue no chão. Este sou eu! Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa". É melhor... o resto é farisaísmo.

Então sóror Josefa Menendes conta esse fato, e ela conta a partir do "julgamento" dela. Ela tem a impressão de que ela é julgada por Deus. De fato, ela não morreu, ela está viva e não é julgada por Deus, mas ela como que vive o julgamento. Então as coisas se passam como se ela tivesse morrido e ela vive o julgamento:

* Meditação de Soror Josefa Menendez sobre o juízo particular da alma religiosa

"A meditação desse dia, 22 de setembro de 1922, era sobre o Juízo Particular da alma religiosa".

Os Srs. sabem que o Juízo Particular é o que ocorre logo depois que a pessoa morre, e que se distingue do Juízo Final, que vai ser o juízo de todas as almas e de cada alma, público, à vista de todos, depois de ter terminado o mundo.

Bem, aqui era, então, o juízo particular da alma religiosa. Quer dizer, da alma da religiosa. O sentido não é o seguinte: a alma de uma pessoa que tem virtude de religião; é a alma de uma religiosa, de uma freira, como é que é julgada. Esse é o sentido da expressão.

E todo tormento depois é também o tormento da freira, maximamente. É o tormento também do leigo, é o tormento também do sacerdote, mas é maximamente o tormento da freira que se perdeu. Então ela diz:

"Minha alma não podia afastar esse pensamento, apesar da opressão que sentia".

Aí é o texto anterior que diz qual era o pensamento.

"De repente senti-me atada e acabrunhada com tal peso, que num instante percebi com mais claridade do que nunca o que é a santidade de Deus e como Elee aborrece o pecado".

É Deus, portanto, o contrário da indiferença, Santíssimo porque odeia o pecado, enquanto odiando o pecado, é isto que é examinado aqui.

* Na hora da morte, toda a vida passa diante da pessoa como um relâmpago

"Vi como num relâmpago toda a minha vida diante de mim, desde a minha primeira confissão até o dia de hoje".

É uma coisa curiosa, mas esse fato dá-se até com pessoas que correm vertiginoso risco de vida e acabam se salvando. Por exemplo, paraquedistas que de repente o paraquedas pifa e caem no chão de qualquer jeito, eles, naquele momento, veem passar diante deles a vida inteira.

"Tudo estava presente; os meus pecados, as graças que recebi no dia de minha entrada em religião, minha tomada de hábito, meus votos, as leituras, os exercícios, os conselhos, as palavras, todos os socorros da vida religiosa, da vida de uma freira."

Os Srs. vejam que isso é em 1922 e como por essa enumeração a gente vê que a condição de freira trazia ajudas para a vida religiosa.

"...Os conselhos que me foram dados, as palavras que eu ouvi, todos os socorros para amar verdadeiramente a Igreja, a Nossa Senhora e a Deus, tudo esteve presente diante de mim em um só momento."

Imaginem sermos julgados agora! Aí os Srs. compreendem como a Igreja tem razão de cantar: "Dies irae, dies illa"...

"Não há expressão que possa dizer a confusão terrível que a alma sente nessa hora: agora é inútil, estou perdida para sempre".

Agora, imaginem uma pessoa que amava a Deus como a sóror Josefa Menendes amou, sentir-se, imaginar-se perdida para sempre. Imaginem a dilaceração do outro mundo, que uma coisa dessas normalmente deve trazer.

"Instantaneamente achei-me no inferno, mas sem ter sido arrastada como das outras vezes. A alma lá se precipita por si mesma, como se desejasse desaparecer da vista de Deus para poder odiá-lo e amaldiçoá-lo."

Imagine o que é essa dilaceração; fugir de Deus para, longe dEle, conseguir desafiá-lo.

"A minha alma deixou-se cair num abismo cujo fundo não se pode ver, pois é imenso. Imediatamente ouvi outras almas se regozijarem vendo-me nos meus tormentos."

Então alguém dirá: "Mas então há uma alegria no inferno?" É quando se vê alguém cair no inferno. São Tomás analisa a questão e ele chama isto "gaudium phantasticum", um gáudio fantasma. É como um fantasma de gáudio, não é verdadeiro gáudio que o demônio sente. Ele ri de sarcasmo, dolorido, de um sarcasmo cheio de dor.

"Ouvir aqueles horríveis gritos já é um martírio, mas creio que nada é comparável em dor à sede de maldição que se apodera da alma; e quanto mais maldizemos, mais aumenta a sede."

* Estar no circuito da bênção, quanto deleite! Estar no circuito da maldição, que horror!

É tão suave abençoar, e é tão feliz o estado de alma daquele que abençoa; receber uma bênção, que coisa agradável! Estar no circuito da bênção, quanto deleite! Por aí os Srs. podem imaginar o tormento daquele que amaldiçoa o bem, o tormento daquele que odeia o bem e que se sente odiado pelo bem.

"Nunca tinha experimentado aquilo; outrora a minha alma ficava cheia de dor diante daquelas horríveis blasfêmias, embora não pudesse produzir nenhum ato de amor. Mas hoje dava-se o contrário. Vi o inferno como sempre; longos corredores, cavidades, fogo, ouvi as mesmas almas a gritar e a blasfemar".

"Pois como já descrevi, embora não se vejam as formas corporais, mantêm-se os tormentos como se os corpos estivessem presentes e as almas se reconhecessem. Gritavam: Olá, aqui estás como nós; éramos livres de fazer ou não fazer aqueles votos. Agora, agora... E maldiziam os seus próprios votos".

É uma coisa terrível! Mas para os Srs. entenderem o que são esses gritos, é preciso os srs. entenderem a clave dos tormentos do inferno. Para os srs. entenderem os tormentos do inferno, basta esta afirmação de Santo Afonso de Ligório: "O fogo da terra (e ele entende não o fogo de uma vela, é em si mesmo o elemento fogo como tal, portanto, mesmo no que ele tem de mais ígneo, de mais combustível) é como um fogo de pintura em comparação com o fogo do inferno". Santo Afonso de Ligório, Doutor da Igreja!...

Então os berros também, a pior barulheira da terra é como uma pintura ou é como um sussurro, em comparação com a barulheira do inferno. É essa barulheira eterna, cacofônica ao máximo, ininterrupta, transmitindo uma dor alucinante, que eternamente soa aos ouvidos.

Se os srs. querem ter uma ideia disso, imaginem uma dessas ambulâncias que passa com aquela luz girando e com aquelas cacofonias. Os srs. imaginem algo que seja para aquilo como se aquilo fosse apenas um sussurro. Imaginem-se ouvindo de todos os lados eternamente uma barulheira tal que, em comparação com ela, aquilo seria como que um sussurro. Só isto produziria um estado de infelicidade completa. E isto aí é apenas uma das vias.

A tal ponto eu sinto o peso da descrição que eu mesmo estou fazendo, que eu acho necessário lembrar algum pecado, para que os Srs. compreendam a proporção, porque, do contrário, pode parecer que eu esteja exagerando.

Mas os Srs. tomem três tipos de pecado. A mãe inglesa (digo mãe inglesa porque esse crime foi cometido na Inglaterra, mas é um crime que com certeza se pratica no mundo inteiro, desde que haja oportunidade) a mãe que provoca o aborto e vende seu filho para uma indústria que usa gordura fetal para fabricar fixador. E faz isso friamente, a tal ponto que ela anota no orçamento doméstico a receita: "gordura de meu filho, vendida por tanto: faz parte do dinheiro que entrou...”

* A repulsa de Nossa Senhora é incomensurável - a de Deus é infinita

Ou então a mãe que aborta e joga o feto do filho numa lata de lixo, onde os transeuntes ouvem o feto chorar e não atendem. O que é isso? Pensem no amor de Nossa Senhora pelo Menino Jesus e comparem!

Quer dizer, quem de nós ousaria aproximar-se de Nossa Senhora, a Mãe das mães, por assim dizer da maternidade, dizendo: "Minha Mãe, eu aprovei que minha filha, minha esposa, minha irmã, sei lá o que, fizesse isto". Nós não teríamos coragem! De nenhum modo! Nem de pensar no tema diante dEla nós teríamos coragem, tal seria a repulsa dEla.

Ora, por mais que Ela seja santa, Deus é infinito. E a repulsa dEla é incomensurável, a de Deus é infinita.

Agora, isso que estou falando a respeito do inferno se torna compreensível quando se trata de pecados dessa enormidade. Mas só porque um “pobre coitado” não compareceu a uma Missa por preguiça, tudo isso?

Eu digo: tudo isso!

Imaginem o "pobre coitado" que sabe que Deus deu uma ordem a ele, e essa ordem é a mais amorosa de todas as ordens: "Eu hoje, Domingo, vou oferecer de um modo incruento mais uma vez por ti o sacrifício da Cruz. Quero, meu filho, beneficiado com esse novo oferecimento de um valor infinito, quero fazer bem a tua alma e quero que vás. E com a minha autoridade de Deus, mando: vá!"

E o "pobre coitado": "não, este travesseiro aqui está muito bom, e Deus que vá plantar batatas, porque eu amo mais o travesseiro do que Ele"... O que é isso? Fizesse alguém isso conosco, como é que nós ficaríamos ofendidos? Pegávamos fogo! Agora, com Deus não, Deus que aguente! Deus é o grande nulo sobre o qual se podem desferir todas as pancadas impunemente? Ninguém se sensibiliza. Mas quando é com a gente, não. Oh-lá-lá! Então ofereço um banquete a alguém e esse alguém não comparece, por que preferiu ficar dormindo? E vai dizer que esse homem não me ofendeu mortalmente? Oh!!!!!

Eu fiquei inimigo dele até o fim dos meus dias, porque ele ficou dormindo em vez de vir ao banquete que ofereci a ele. Está lá o banquete eucarístico que vale infinitamente mais do que um banquete com presunto, com sei lá o quê. E nós fazemos esse serviço, e dizer "um pobre coitado" que de preguiça não compareceu à Missa... É o caso de perguntar: a haver pobre coitado aqui, se coubesse a comparação, o pobre coitado não seria Deus, que sofreu a injúria e que ainda tem um filho que pense que Ele não deve ter horror ao ato daquele homem? Onde é que nós estamos?!

Os Srs. hão de reconhecer que este modo de raciocinar é muito tonificante. Muito tonificante! Para esse charco de indiferença onde nós vamos nos atirando, é muito tonificante.

Agora então começa o tormento. Isso foi o preâmbulo. Então:

* Fui empurrada para aquele lixo inflamado e esmagada como que entre duas tábuas ardentes, e como se ferros e pontas em brasa se me enfiassem no corpo

"Fui empurrada para aquele lixo inflamado e esmagada como que entre duas tábuas ardentes, e era como se ferros e pontas em brasa se me enfiassem no corpo".

Era como se pontas de ferro em brasa se enfiassem no corpo. Os Srs. imaginem que um inimigo pusesse os Srs. ali qual era a sua reação diante desse inimigo? Isso Deus faz com o condenado pelo horror que Ele tem ao pecado do condenado.

“Aqui Josefa torna a descrever os múltiplos tormentos que não lhe poupam um só membro:

"Senti como se quisesse, sem o conseguir, arrancar minha língua, tormento que me reduzia a extremos de dor".

Eternamente, uma extração de língua que está sempre para descolar e que nunca descola. Eu vejo um ou outro passar a mão pelo rosto, pela cabeça. É bom, é bom!...

"Os olhos pareciam sair-me das órbitas. Creio que por causa do fogo que tanto os queimava."

Fogo nos olhos, os Srs. já imaginaram isso? Os Srs. imaginem uma câmara de tortura onde cortam com tesoura as pálpebras do sujeito, e ele não pode fechar os olhos; o põem de bruços e acendem embaixo uma vela. Mas uma vela cujo tamanho não diminui nunca, dotada de uma espiral embaixo, à medida que a vela queima, a espiral vai subindo. Haverá pelo menos um fim, quando não houver mais olhos... Não! Perpetuamente os olhos ficam ardendo!

"Não havia uma só unha que não sofresse horrivelmente. Não se pode nem mover o dedo para buscar alívio."

A imobilidade dentro do tormento, nem o dedo. Imaginem um homem que, numa operação terrível, dobra o dedo. Nem isso pode fazer! Nada! É uma coisa horrorosa. Mas também, também, também...

O Cardeal Mindszenty conta nas suas memórias que ele foi torturado durante o processo, que ele ia - ele Cardeal-Arcebispo de Budapeste, arcebispo-príncipe de Esztergom - ele era levado vestido de palhaço para ser julgado por aquelas hienas. Durante o julgamento ele sofria maus tratos, sofria toda espécie de torturas, depois o deixavam jogado no quarto. Quando começava a anoitecer, de medo de que os prisioneiros se aproveitassem da noite para de algum modo se suicidar, não havia luz no quarto deles, e eles eram obrigados a se deitar, sem poder ler e sem ter o que fazer.

* Não havia uma só unha que não sofresse horrivelmente. Não se pode nem mover o dedo para buscar alívio

Evidentemente, com o sono mais irregular possível, na perspectiva da dor do dia seguinte, da lembrança da dor do dia, nos maus incômodos dessas torturas acumuladas, provavelmente horas em que eles dormiam como desacordados e horas em que eles não conseguiam dormir. E do modo mais irregular. O carcereiro visitava em horas inopinadas a cela, para ver se o pobre prisioneiro pelo menos se tinha sentado, porque então apanhava. Se os Srs. consideram algumas longas noites do inverno europeu, os Srs. podem imaginar o que isso representa.

Ele conta que passou anos assim, sem ter uma pessoa com quem conversar, sem ter rosário para rezar, sem ter pão nem vinho para consagrar, e completamente isolado, sem saber o que acontecia no mundo. De vez em quando vinha um médico para examiná-lo, dava-lhe remédio e o obrigava a tomar remédio, e explicou a ele que era porque era do interesse da causa comunista que ele sofresse, mas não era do interesse da causa comunista que ele morresse, de maneira que o atormentariam, mas o conservariam em vida.

E em certo momento informaram a ele que ele estava tuberculoso e que ele ia começar a tomar injeções para curar a tuberculose. E vinha um médico russo que não sabia falar húngaro nem alemão, nem nada, mas que ele percebeu que era russo, entrava na cela dele e não dizia uma palavra para ele. Então o intérprete dizia a ele: "Conte o que você está sentindo". Ele contava o que entendesse contar. O médico fazia lá seus cálculos e dosava o remédio, até ele sarar da tuberculose na própria cela.

Quem fez isso merece o quê? Quer dizer, onde é que nós estamos? Vamos pensar um pouco!...

Coisa emocionante, depois que terminou o processo, ele ficou preso, mas então já não o torturavam mais. Mas ele passou, se não me engano, eu tenho má memória, sete anos isolado. Um dia, andando na cela, ele viu no móvel um minúsculo cálice, cheirou e era vinho, e junto notou um pedacinho de pão. Ele mais do que depressa consagrou e comungou; estava celebrada uma Missa. Na história das Missas, desde a Santa Ceia até a última Missa do mundo, que esplendor! que magnificência! que Missa gloriosa!

Que bonito esse raio de luz que entra no meio das trevas, e essa alma que teve uma vez um pouco de pena e um pouco de coragem, e com certeza, um pouco depois, apareceu lá e levou embora o cálice, correndo o perigo de ser morta se se percebia que tinha levado para o cardeal o cálice. Porque em prisão comunista, os Srs. sabem: um cálice que desaparece é um inquérito policial e possivelmente morte. Quem fez isso não merece graças? Se nós nos alegramos tanto com alguém que fez isso, imaginem Deus olhando eternamente quem fez isso. Que alegria! Que festa!

* Os ouvidos ficam acabrunhados com os tais gritos de confusão que não cessam um instante. Um cheiro nauseabundo e repugnante asfixia e invade tudo

Agora imaginem um homem que tivesse afastado o pão e o vinho e tivesse morto esse indivíduo. Aqui o que é que é? Quer dizer, onde é que nós estamos com a cabeça? Tenha paciência...!

"Não se pode nem mover um dedo para buscar alívio, nem mudar de posição, o corpo fica como que achatado e dobrado pelo meio."

Entre as tábuas e com pregos dentro! A cama do Cardeal Mindszenty: um paraisinho em comparação com o inferno...!

"Os ouvidos ficam acabrunhados com os tais gritos de confusão que não cessam um instante. Um cheiro nauseabundo e repugnante asfixia e invade tudo."

Um cheiro perto do qual as nauseabundices da terra não são senão ventos inócuos, ventos sem cheiro. Esse é o nauseabundo do inferno.

Os Srs. já imaginaram - é prosaico o que vou dizer - mas uma ânsia de vômito eterna? É uma das coisas mais desagradáveis que pode acontecer ao corpo. Eterna, não para nunca, a náusea total... o tormento! E, para a minha constituição física, um outro horror: a falta de ar, que vem com o nauseabundo. Asfixia! Meu Deus, como é?!...

"É como se carne em putrefação estivessem queimando com piche e enxofre, mistura que não se pode comparar a coisa alguma no mundo dos vivos, essa mistura no inferno. Tudo isso senti como das outras vezes. E embora fossem horríveis esses tormentos, nada seriam se a alma não sofresse.  Mas sofre de maneira que não se pode descrever. Não posso explicar o que foi esse sofrimento, muito diferente dos que experimentei das outras vezes, pois se o tormento de uma alma do mundo é terrível, nada é em comparação com o de uma alma religiosa..."

Ah!... senhores!... Senhores!...

"Essa necessidade de odiar é uma sede que consome. Nem uma recordação que lhe possa dar o mais pequeno alívio.

Um dos maiores tormentos, acrescenta Josefa, é a vergonha que a envolve. Parece que todas as almas danadas que a cercam lhe gritam sem cessar: "Que nós nos tenhamos perdido, nós que não tínhamos os mesmos socorros que tu, que há de extraordinário? Mas tu, que te faltava? Tu que comias à mesa dos eleitos".

"Tudo o que estou escrevendo, conclui ela, não é senão uma sombra ao lado do que a alma sofre, pois não há palavras que possam exprimir tormento semelhante".

*  *  *

Bem, meu caros, hoje é a festa da Assunção de Nossa Senhora, a festa de todos os gáudios e todas as alegrias, a festa do dia em que Nossa Senhora ressurrecta, tendo abandonado a condição de mortal, sobe aos Céus levada pelos Anjos. A isso se chama Assunção, e não Ascenção. Nosso Senhor subiu aos Céus por sua própria força, por seu próprio poder. Ela subiu ao Céu carregada por revoadas inenarráveis de Anjos, o Céu inteiro participou desta alegria de levar Nossa Senhora ao Céu. E nesse dia eu falo do inferno...

Eu tinha intenção de encerrar com a Assunção, para que esta fique no dia de hoje a nota tônica que marque o dia com suas alegrias, inclusive em contraste com o horror que eu acabei de falar.

Que reflexão convém, depois de uma tal meditação, fazer a respeito da Assunção de Nossa Senhora?

Eu procurarei ser breve, mas cabe muita coisa dentro dessa brevidade. Nós imaginamos a noite de Natal, e todas as noites de Natal que até hoje houve - exceto deste Natal laico e comercializado de hoje em dia, mas que já quase não é Natal, exceto isto - todas as noites de Natal participavam da noite de Natal: "Stille Nacht, heilige Nacht! etc. etc., os Srs. conhecem.

A noite de Natal tinha um néctar, uma poesia, um encanto, um discernimento de espíritos por onde todo mundo como que sentia e conhecia a graça de Deus e de Cristo que desce como um orvalho do mais alto do Céu, ou seja, do claustro sacratíssimo de Nossa Senhora, e sem transgredir a virgindade intacta e ilibada da Mãe, entra nesta terra. A Virgem teve um Filho e a terra se extasia. É realmente uma maravilha.

* A obra-prima do mero criado vai entrar no Céu: "onde está o lugar para minha Mãe?"

Mas agora vai se dar outra coisa: é a obra-prima do reino do mero criado que vai entrar no Céu. O que houve no reino do criado de mais alto foi a Humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi ao Céu antes dEla. O cortejo das almas que iam para o Céu foi aberto por Ele. Ele foi o primeiro. E no sulco dEle provavelmente terão ido as miríades de almas que estavam no limbo e os justos que morreram naqueles dias etc. etc., foram em seguida. E nunca nós teremos uma ideia suficiente nesta terra do que foi a glória inimaginável que foi a entrada de Nosso Senhor no Céu.

Para lhes dar uma noção pálida, nós não somos capazes já não digo de descrever, mas de imaginar o Tabor, onde Nosso Senhor foi glorificado. Agora, quando Ele entrou no Céu, a glória dEle era incomparavelmente maior que a do Tabor, e a alegria dos habitantes do Céu era incomparavelmente maior do que dos pobres terráqueos que estavam olhando eternamente, e que depois ainda fariam o que fizeram.

Bem, no esplendor do Céu entra Nosso Senhor Jesus Cristo com uma glória incomparável! Por assim dizer, depois de ter festejado na sua humanidade o encontro com a Trindade, depois de tomar assento gloriosamente no Céu - a sua natureza divina nunca deixou o Céu - depois disso, por assim dizer, o seu pensamento qual foi? Onde está o lugar para Minha Mãe? E começou a preparar tudo para o dia da Assunção.

Porque, depois da Ascenção, a maior festa do Céu é inegavelmente a Assunção. E então a gente poderia dizer que todo o universo estava numa alegria especial. Aquilo que foi uma morte, mas que a Igreja, que é mestra de todas as delicadezas, chama "dormitio Beatae Mariae Virgine", a dormição de Nossa Senhora, em português a palavra “dormição” não existe a não ser para a morte de Nossa Senhora, leve como um sono. Assim foi a morte da Virgem das virgens.

Depois da dormição, os Apóstolos, ainda desolados, veem Nossa Senhora que ressurge. A Assunção se prepara. Eles vão até o monte, infelizmente não me lembro qual é, talvez seja o próprio Tabor, e começa a Assunção.

Começa como? Eu tenho a impressão de que era um maravilhamento de todos, e Nossa Senhora ia tendo Ela mesma seu Tabor. Quer dizer, todas as glórias que havia nEla começavam a se mostrar, como se mostrara a de Nosso Senhor no alto do Tabor.

Todas as bondades, toda a suavidade, toda a soberania, todo o domínio, todo atrativo, a virginal intransigência, a virginal firmeza nEla se afirmavam de um modo esplêndido e isso ia misteriosamente reluzindo, reluzindo, acentuando-se de maneira tal, que tenho a impressão que, quando começou, os que estavam presentes lançaram exclamações, depois começaram a cantar e depois o canto foi morrendo e começou - se eu pudesse dizer isso - a zumbir, mas zumbir celestialmente, o silêncio de quem já não ousava dizer nada...

Até certo momento as pessoas ainda se entreolhavam, depois deixavam de se entreolhar porque como que esqueciam que estavam outros perto, só olhavam para Ela, mas Ela não parava de manifestar quintessências por si mesma. Mas sucessivamente, sucessivamente! Olhando para o Céu e tendo-se a impressão de que não era Ela que ia subir, mas que o Céu ia baixar até Ela, e que se diria que a cúpula celeste estava se tornando cada vez mais baixa e que, se a gente estendesse a mão, batia com o dedo no azul.

Certamente a isto correspondeu em determinado momento, uma sensação de tal veneração, de tal inferioridade, mas ao mesmo tempo de tal intimidade, e cada um A sentia tão próxima dentro da própria alma, e tão meiga e tão afagante, e tão recomponente, e tão tonificante, tão reparadora, e tão Mãe, que eu tenho a impressão de que cada um se ajoelhava diante dEla à espera de encontrá-la sentada e poder pôr a cabeça sobre os joelhos sagrados dEla e ficar ali.

Os Apóstolos quiseram passar a eternidade olhando Cristo de pé. Eu acho que depois eles queriam ter passado a eternidade com a cabeça repousando sobre os joelhos celestes de Nossa Senhora. E de vez em quando olhando-A um pouco, e sentindo de vez em quando a mão dEla como uma carícia passando pela cabeça.

* Todos se sentiam como que embebidos de Nossa Senhora como o papel se sente embebido com azeite perfumado

Mas isso fisicamente não se podia ter realizado, realizou-se no fundo das almas, naquela região misteriosa que São Paulo chama "a junção da alma com o espírito", essa região misteriosa do ser que é a junção da alma com o espírito, e onde ele diz que entra a palavra de Deus como um gládio de dois gumes. Se entra a palavra de Deus, não entra o afeto da Mãe de Deus? Até lá chega! E então todos se sentiam como que embebidos de Nossa Senhora. Como o papel se sente embebido com azeite perfumado, assim eles se sentiam, como que embebidos de Nossa Senhora, e já não sabiam mais o que dizer...

Quando começam os ares a se mover e os ventos como que a tomar forma, e a flutuar de um modo singular, definem-se figuras angélicas e o Céu se revela sucessivamente cheio de Anjos que cantam, que cantam... E Nossa Senhora está toda rodeada de Anjos. Pensa-se que os Anjos são mais esplendorosos do que Ela. Quando aparecem os Anjos, Ela, que tinha chegado ao auge de Seu esplendor para mostrar que supera todos os Anjos, aumenta ainda o Seu esplendor até o indizível, de maneira aos próprios Anjos ficarem pálidos em comparação com Ela.

Os homens acompanham, como os Srs. acompanharam há pouco, dizendo Oh! ou ficando quietos. Eles não percebem uma coisa que se deu. Aí Ela perdeu toda a proporção com a terra, é a hora da despedida. Ela começa a mover-se, a olhar com um afeto que procura transpor uma distância cada vez maior, e eles sentem que o irreparável está acontecendo. E ao mesmo tempo, se alegram e se dilaceram, choram e se extasiam, se sentem no Céu e se sentem na terra do exílio. Os Anjos cantam cada vez mais indizivelmente e eles vão prestando atenção nos Anjos.

* Ela começa a mover-se, a olhar com um afeto que procura transpor uma distância cada vez maior, e eles sentem que o irreparável está acontecendo

Em certo momento, quando eles olham - eles não tinham percebido - Nossa Senhora tinha desaparecido no vértice dos Anjos, levada por eles. Os Anjos revoam e cantam mais algum tanto, para consolar os homens, depois vão desaparecendo gradualmente, e é noite. De repente eles percebem que estavam juntos, uns ao lado de outros, e então começam a se olhar e ficam quietos. De repente, um diz: "Vamos para casa?" E outro responde com voz completamente assim: "É, já é tarde, não? - É mesmo!" E começam a descer o Tabor...

Ao descer, de repente algum se lembra de alguma coisa e diz: "Lembra-se de tal coisa?" E outro diz: "Lembra aquele?" Depois: "Lembra tal outra coisa assim, tal outra cena, tal outra beleza?" Quando dão acordo de si, estão todos cantando. E no fim da descida do Tabor, quando eles se despedem, eles se perguntam: "Quando é que nós nos reencontramos para continuar aquilo? Quando nós estivermos juntos, Ela estará no meio de nós. Há um modo de nos encontrarmos: é sermos todos consoantes com Ela. Ela estará conosco, e onde está Ela está Ele..."

Os srs. estão vendo bem, não descrevi Nossa Senhora, não ousei. Eu descrevi Nossa Senhora na reação daqueles que olhavam para Ela, porque eu não acredito que alguém tenha - eu pelo menos não sinto em mim - talento nem capacidade para descrever Nossa Senhora. Quem pensa, se engana.

Lembra-me do expediente de Dante Alighieri no último canto [da “Divina Comedia”], quando, depois de ter percorrido todo o Céu, ele se apresenta perto de Deus: não ousa olhar para o Lumen Incriado que está brilhando... Ele então olha para a vista de Nossa Senhora e nos olhos de Nossa Senhora ele vê o lumen de Deus, e ele tem o famoso soneto final a Nossa Senhora com que termina a Divina Comédia.

Assim também é justo que nós olhemos para as almas dos que a viram subir ao Céu, para assim vermos o reflexo dEla.

É um expediente perfeitamente legítimo. Acusou-se a Divina Comédia de ser linda, mas intérmina. Eu fui intérmino, chegou a hora de nós encerrarmos.

Nota: Para conhecer mais sobre as revelações com as quais Sor Josefa Menendez foi favorecida, basta clicar aqui.


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