Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

O Menino do tambor:

 

singeleza, inocência e reflexões para o Natal

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 22 de dezembro de 1984, sábado

  Bookmark and Share

 

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


Abaixo, música da canção de Natal "Menino do Tambor", comentada na primeira parte desta reunião

 

*     *     *

 

  

Meus caros, a lindíssima apresentação que tivemos aqui, desses Reis Magos tão poéticos, com seus turbantes, etc., desse menino tão mais poético do que os Reis Magos, com seu chapeuzinho de cone truncado, lembrando um pouco o chapéu do bem-aventurado [São] Charbel Mackluf, aqueles arenais imensos e sem fim, daquelas montanhas que não tem nome, porque o vento as faz e o vento as desfaz... Ora elas estão de um jeito, ora estão de outro jeito, os vendavais as acumulam. E assim como elas fazem, elas se desfazem. Panorama mutável do deserto, no qual se passa a infância séria, a infância equilibrada, a infância um pouco triste, a infância profunda e alegre daquele menino.

Daquele menino que, pelo que está descrito ali, não foi educado com companheiros, foi educado com um velho pai pobre; menino que perdera a mãe, que tinha, portanto, a orfandade dos carinhos que não recebeu, e que tinha a solidão dos maus companheiros que não teve.

Que não conhecia a chacota permanente, o gracejo indecente, a imoralidade, a agitação, a rivalidade; ele só conhecia o seu velho pai que ele respeitava em longos ritos orientais; só conhecia a grandeza dos arenais do deserto, e que retinha do pai um só presente, mas que recebera do pai um presente muito maior do que todos que poderia ter: era a capacidade de alma de se alegrar com um só presente, o que vale mais do que de ter mil presentes. E que dessa situação tirou para si a condição de compositor. Um menino que brinca em produzir ritmos e melodias, que maravilha! Como isso é melhor do que o menino rico que tem brinquedos, brinquedos e brinquedos e brinca e não tem nada para brincar.

Como é bonita a figura desse menino, como é bonita a solução dada para o caso dele! Ele, afinal de contas, sabe do Menino Jesus e vai tocar o seu tamborzinho para o Menino Jesus. É tocante, é sem dúvida nenhuma tocante a figura do menino que leva o tamborzinho para o Menino Jesus ouvir. Menino Jesus para quem os anjos no mais alto dos céus estão cantando sinfonias inapreciáveis, e diante do qual chega um menino que toca o tamborzinho. E o Menino Jesus abre os olhos e, com misericórdia, ouve aquele tamborzinho, e se agrada, e atrai aquela alma. Seria talvez o primeiro amigo do Menino Jesus. Que vocação maravilhosa!

Mas, se a gente considera um outro aspecto do assunto, a gente se comove talvez ainda mais. Tudo isso é muito emocionante, mas a gente se comove ainda mais. Nós temos o hábito de pensar no Menino Jesus que está na manjedoura e que espera todos que vão a Ele. A realidade história é essa: O Menino Jesus estava na manjedoura e as pessoas iam até Ele para adorar; os Reis Magos, os pastores, bem entendido Nossa Senhora e São José, depois outras pessoas que terão passado por lá. Essa é a realidade histórica.

Mas há uma realidade teológica, há uma realidade sobrenatural, que se liga a essa, que não se dissocia desta, e que é tão, tão, e tão mais comovedora, e não é menos real: é o Menino Jesus que, de um modo invisível, na Noite de Natal, sai ele tocando seu tamborzinho pelo mundo afora, à procura de almas e pedindo a esta alma, àquela alma, àquela outra alma, àquela outra alma que venham a Ele, que O amem, que O conheçam, que sejam dEle. Ele tem muito mais do que um tamborzinho para atrair os homens e para encantá-los: Ele tem as pulsações de seu coração; as sagradas e inefáveis pulsações de seu coração.

Ao que corresponde isso de real?

Corresponde de real – se deixarmos a metáfora e formos diretamente ao fato  –  o que isso tem de real é o seguinte: se nós tomarmos uma mesma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo  –  os senhores considerem dessas imagens, a que mais me toca já entra nisso alguma coisa de subjetivo, de legitimamente subjetivo, de pessoal, talvez não seja o que mais toca os senhores, é legítimo que cada um tenha lá sua preferência, para mim o que mais me toca é o próprio santo Sudário de Turim.

Então não é o Jesus Menino, mas é Nosso Senhor crucificado. Não está nos braços de Nossa Senhora, amorosamente carregado, está pregado na cruz pela crueldade dos esbirros romanos. Ali está Ele. Morreu e está na sepultura. Todas as chagas da Paixão estão representadas nEle, e Ele está ali, eu O olho.

Quando eu olho, a graça, que é uma participação criada na vida de Deus, toca minha alma de católico, como toca a de qualquer católico, de todos os católicos, toca minha alma de católico. E, em função da minha mentalidade, da forma de virtude que nos planos da Providência eu devo ter, a graça me toca de um modo especial, de maneira a ver especialmente em Nosso Senhor, no seu Santo Sudário, um aspecto ou outro aspecto, ou aquele outro aspecto.

E assim eu O vejo com a objetividade dos olhos que veem uma coisa; eu O aprecio, analiso com a objetividade de uma mente, graças a Deus sã, e que vê a realidade como ela é. Mas aquilo tudo se ressalta para mim de um certo modo, com certa fisionomia, com certas características que foram feitas para que eu as considerasse, de maneira que para mim homem, para mim concebido no pecado original, homem do século XX, entretanto o Santo Sudário apresenta uma certa forma de beleza, uma certa forma de atração que não apresentará para nenhuma outra alma do mundo, porque Nosso Senhor  se manifesta sob um aspecto especial para cada alma da terra.

Assim como nenhuma alma é igual à outra e todas as almas são diferentes, e cada alma por mais humilde e modesta que seja, em um certo sentido, num certo ponto, ela é suprema, ela tem qualidades que Deus não deu a ninguém,  –  serão qualidades do tamanho de um centésimo da superfície de uma ponta de alfinete, mesmo assim, mesmo assim, aquilo Deus deu a ele e não deu a ninguém.

Assim também Nosso Senhor se manifesta a ele em consonância com aquilo que deu a ele, de maneira que aquele ame a Deus daquele jeito. E assim cada alma que passa pela terra, tem a missão de adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, vendo um certo aspecto de sua santidade inefável, insondável e perfeita; um certo aspecto de sua pessoa divina-humana perfeita; e esse aspecto é para cada um. E assim, se todos nós tivéssemos aqui uma imagem dEle, todos estaríamos vendo a mesma imagem, mas todos estariam vendo na imagem alguma coisa condicionada à santidade que Deus quer de cada um.

Ora, é noite de Natal, Nosso Senhor está numa manjedoura. Essa manjedoura, numa cidade católica, se encontraria em todas as igrejas, mas se encontraria em outros lugares, em oratórios públicos, em presépios públicos; se encontraria numa virtude de uma casa comercial especialmente adornada, quem passa vê etc., em mil lugares haveria isto.

Bem, o homem que vai andando por meio de todas essas representações de Nosso Senhor Menino, é de repente tocado por uma representação que é mais especialmente destinada a ele. E aquela toca a ele, e aquela se fixa na alma dele, e ele mais especialmente pára e diz: meu Senhor e meu Deus!

Às vezes não é no momento, a pessoa pára, olha e depois vai para casa. E será em determinado momento, quando está em casa fazendo qualquer coisa da vida caseira, vamos dizer, é tarde, é noite, ele vai se deitar, ele está arranjando a roupa que vai vestir no dia seguinte, ele está escrevendo uma última carta para alguém, ele está contando quanto dinheiro tem na carteira, para ver se tem bastante, se ele pega mais, as mil coisas; dando corda no relógio, as mil coisas da preparação para o sono, lhe vem de repente, pela ação da graça conjugada com a ação da natureza, a memória, pelo jogo da natureza, apresenta a ele aquela figura que ele viu, e a graça incide sobre aquela figura. Ele pára ali e diz: meu Senhor e meu Deus!

E isto mais ou menos se dá, não se dá assim matematicamente, para cada homem aparece um modo inteiramente definido, numa noite de Natal este aspecto de Nosso Senhor. Isto é mais subtil, é mais complexo, esta é uma realidade de fundo. A realidade de superfície é menos marcada. A gente vê em 4, 5 natais, de 4, 5 anos consecutivos, a gente vê uma mesma imagem; ou vê 2, 3 imagens diferentes, ou 5 imagens. Em certo momento, na memória, essas imagens se sobrepõem e, de repente a gente vê uma que tem tudo aquilo que a gente sentiu nas outras: ah! meu Senhor e meu Deus! Aí está Jesus Cristo Nosso Senhor, como eu amo especialmente.

Isto equivale a dizer que o Menino Jesus, pela graça, visita todas as almas. E Ele faz o papel não mais daquele que recebe a visita, mas daquele que vai atrás dos homens, e que a todos os homens, de todas as idades, de todas as línguas, de todas as condições sociais, a todos homens procura de modo especial nessas noites. E lhes diz alguma coisa que lhes toca o coração de um modo também especial.

Os senhores têm uma prova curiosa disso nessa própria canção que foi cantada há pouco: Stille Nacht, heiligue nacht. Os senhores sabem como é que essa canção nasceu. Foi um professor público, de uma cidadezinha do interior da Alemanha, que, houve qualquer coisa com o vigário, não apareceu o músico, não me lembro mais o que houve, uma trapalhada qualquer que era preciso então ele compor para o Natal uma música. E ele compôs essa música. Era a emoção dele diante da manjedoura. Mas, lentamente, lentamente, a Providência tinha preparado na alma dele uma emoção de Natal que era para o mundo inteiro.

Ninguém é profeta em sua própria terra. Esse músico que, evidentemente, não era um grande músico, mas era um homem de uma sensibilidade musical delicadíssima e de grande valor, esse músico tocou isso. Entrou pelo meio – já não lembro bem dos pormenores, eu me teria informado melhor se soubesse que era este o tema da noite, os senhores estão pegando o tema da noite despreparado, saindo das respectivas embalagens na desordem em que estão, mas enfim – entrou uma professora aí pelo meio que também colaborou, não me lembro bem, com isso. O fato é que ninguém se interessou especialmente, na paróquia, por essa música. Ouviram, está bem, terminou o Natal, está bom, cantaram isso mais umas vezes.

Em certo momento passou, não me lembro mais que homem célebre pela aldeia, e ouviu essa música e achou maravilhosa, pediu, quis a partitura, mandou executar. E aí mandou executar, era um rei, era um grande compositor, não me lembro o que era, mandou executar em grande nível. E aí conquistou o mundo. Foi como um pombal que se abrisse e todas as pombas voaram em todas as direções do mundo: 

Stille Nacht,  –  noite silenciosa;

heilige Nacht,  –  noite santa;

alles schlaft, – tudo dorme

ein sam wacht, – fica acordado, sozinho

nur das traute hoch heilige Paar, – o venerável e altamente santo casal.

Qual é o venerável e altamente santo casal? Os senhores estão vendo: quando se aproximava a meia-noite, Nossa Senhora estava em oração, e São José também. Como seria essa oração de Nossa Senhora? Alguém pode imaginar como seria essa oração de Nossa Senhora? É uma coisa admirável, santíssima e terrível. E, se me lembrarem, eu direi porque terrível.

Ela devia estar num êxtase altíssimo, como talvez místico nenhum na Igreja jamais tenha tido a não ser Ela, quando bate nos relógios dos anjos a meia-noite. E, de um modo virginal, sem dor nem sofrimento para ela, o Menino Jesus vem ao mundo: Stille Nacht,  heilige Nacht. São José presencia tudo. Em determinado momento, ele tomado de veneração cada vez maior pela esposa, de adoração pelo Filho adotivo dele que está para nascer, ele percebe que o mistério se passará e que não é para os olhos dele. Ele baixa os olhos, baixa a cabeça, mas ele todo sente que algo de celeste está se passando.

De Nossa Senhora, de Maria Virgem, virgem antes do parto, durante o parto e depois do parto, nasce o Menino Jesus.

Bem, como é que Ele se apresentou para Nossa Senhora? Se para cada um Ele tem um aspecto, como era o aspecto dEle para Ela? São perguntas que se podem pôr. Aspecto dele para São José, como era?

Evidentemente, eu creio não ser temerário afirmando, que para Nossa Senhora, que não tem comparação com nenhuma outra criatura, absolutamente fora de comparação e superior a tudo, para Nossa Senhora Ele deve ter aparecido ao mesmo tempo com todas as majestades, todas as venerabilidades, todos os encantos, todas as doçuras e as afabilidades que teve para todos os homens, desde aquele momento até o fim dos tempos. Era mãe dEle e era mãe concebida sem pecado original e que nunca na vida tinha deixado de dar uma correspondência perfeita a cada uma das graças únicas que Ela tinha recebido. Podem imaginar como era a santidade dEla e podem imaginar como Ele queria a Ela, e como Ela queria a Ele?

É claro que Ela O viu e entendeu completamente, como ninguém antes, como ninguém depois; e que O adorou totalmente. A adoração somada de todos os homens até o fim do mundo, a adoração de todos os anjos, não dava a adoração de Nossa Senhora.

Perto dela São José, o filho de Davi. Como Ela, o descendente dos reis, homem casto, homem puro, homem que tinha passado por uma das maiores provações que houve na história da humanidade, e foi a perplexidade dele, terrível e admirável, homem que aí sofreu mais do que todos os mártires, mas que estava ali e sabia: aquele Menino não era filho dele segundo a natureza, ele o sabia. Mas ele tinha um direito sobre aquele Menino, porque Nossa Senhora era verdadeiramente esposa dele. E como esposa dele, ele tinha o direito sobre o produto sagrado das entranhas dEla. De maneira que ele tinha um como que poder de pai sobre o Menino Jesus.

Está bem, ele apresentou ao Menino Jesus, ali naquela noite, uma adoração altíssima. Não era a adoração de Nossa Senhora.

Se nós pudéssemos ver a São José adorando o Menino Jesus naquela noite, nós talvez ficássemos instantaneamente santos, cada um de nós, de tal maneira ele era... ele era o esposo de Nossa Senhora, o que mais tem que dizer? Os senhores querem honra maior do que o esposo, o alter ego, o outro ou mesmo de Nossa Senhora? Não sei o que dizer! Pai adotivo do Filho de Deus, o que dizer?

Os senhores podem imaginar o que nos iria na alma só de ver, por uma freta dentro das pedras da gruta, São José rezar. Eu acho que qualquer um de nós podia se converter e dar num grande santo.

Na realidade, entretanto, por mais que isso seja belo, é verdade que se visse Nossa Senhora, diria a São José: “Meu pai  –  porque vós sois pai de todos os homens, meu pai porque sois patriarca da Igreja Católica,  –  meu pai, eu vos digo com franqueza, vossa Esposa ainda é incomparavelmente mais. Vendo-vos, eu pensava chegar ao píncaro da minha imaginação, e é verdade. Vendo a Ela eu vi aquela que minha imaginação nunca imaginou; minha imaginação nunca tinha concebido. Não sou capaz de conceber, não se imagina, Ela é de uma perfeição inimaginável! Essa é Ela”.

Eu acho que só de eu ouvir respirar e sentir que seu Coração Sapiencial e Imaculado pulsava mais forte porque ali estava o Menino, só disso dava para nós nos convertermos. Incalculável!

Pois bem, se é assim para Nossa Senhora, foi assim para São José, em proporção menores é para todos os homens. E na noite de Natal, nos dias que precedem o Natal e que já vem ungidos com a alegria de Natal, nessas ocasiões já a graça começa nos trabalhar.

Mas o que é a graça? A graça é uma participação criada na vida de Deus, a graça nos foi obtida por Nosso Senhor Jesus Cristo, a graça é o que nos liga a Ele, nos une a Ele, é o presente dEle; a graça começa nos trabalhar, a graça começa nos modelar. E cada um, sem se dar conta, sente o Natal de um modo um pouco diferente.

Ouvindo o Stille Nacht, ouve de um modo um pouco diferente. Vendo tal ou tal outra imagem do Menino Jesus, sente de um modo um pouco diferente. É Ele que vai atrás do coração de cada um de nós. E, sem nós percebermos, diz pela voz da graça no fundo de nossa alma: “Meu filho, assim sou Eu para você. Adore-me, porque assim, assim, nenhum outro homem me adorará. É você ou ninguém. Você quer?”

Os senhores percebem a beleza que há nisso, e como Ele pode ser comparado àquele menino, neste sentido: o menino foi atrás dEle  –  Ele vai atrás de todos os homens, meninos ou velhos, grandes ou pequenos, sábios ou ignorantes, seja o que for, Ele vai atrás de todos. Pecadores, e as vezes pecadores imundos, Ele vai atrás desses homens, e Ele toca o coração desses homens dizendo: “Meu filho, não queres vir a Mim? Nem agora queres vir a Mim? Pelo menos desta vez, pelo menos neste instante, deixa-te comover um pouco. Aqui estou Eu à tua procura, no interior de tua alma.”

Esse é o sentido profundo do que eu descrevi ontem à noite da noite de Natal. Quer dizer, aquele palpitar das almas na noite de Natal é um palpitar da graça. A graça obtida por Ele; a graça que, enquanto Ele é homem-Deus, é uma participação na vida divina, e portanto, em certo sentido, da vida dEle também, e que nos une a Ele. E é por essa graça que nós devemos pedir por intermédio da Virgem Maria, é por essa graça que nossas almas pulsam de um modo especial na noite de Natal.

Se nós compreendermos bem isso – vamos agora passar à festa de Natal, na noite de 24 a 25, portanto, terça-feira, quando com o favor de Nossa Senhora estaremos todos na igreja de Fátima e começar o desenvolvimento da pompa sagrada em que alguns terão a graça de cantar, terão a graça de desfilar, terão a graça de agitar estandartes; outros terão a graça de ficar de lado, ficar olhando e ficar admirando. Uns e outros voltados para o sacerdote que terá a graça incomparavelmente maior de oferecer o santo sacrifício da Missa.

Então lembremo-nos disso; que tudo aquilo que está se passando ali toca as almas de um modo especial. É uma comemoração do Natal e o jogo dos estandartes, e o canto, e as alabardas, e as espadas, e a trompete, e o órgão, e o geral da presença dentro da igreja de Fátima, e tudo o mais, vai nos tocando.

Eu sei de gente que quando vê tudo isso, chora. E eu compreendo esse pranto. Eu não sou de chorar, mas eu compreendo esse pranto, ele me encanta. Isto é bom que seja assim. Não chego dizer que deve ser assim, mas digo que é bom que isto seja assim, é digno e justo que seja assim.

Bem, bate o sino e entra o padre. Entra o padre, começa a missa. Sublimíssima coincidência: ao mesmo tempo se festeja o Natal, é a meia-noite, o Menino Jesus nasceu. Mas, ao mesmo tempo também o padre vai celebrar a missa que é a renovação incruenta do santo sacrifício da Cruz.

Eu imaginei na noite de ontem o Menino Jesus apresentando-se ao olhar de Nossa Senhora e de São José já com os braços abertos em forma de cruz. Se nós imaginarmos isso, podemos ver nisso o prenúncio, não só do santo sacrifício do Calvário, mas das missas incontáveis que na noite de Natal, para a Cristandade inteira afora, nas ilhas mais remotas da Oceania, nas penedias mais isoladas do maciço central da Ásia, nos desertos mais a lá aquilo da África, sei lá no que, nos rincões mais profundos da zona mais fluvial do Brasil, e por toda a terra, e por toda a terra. E nas grandes catedrais, em Chartres, em Notre Dame, em Colônia, no Mosteiro da Batalha, em quantos outros lugares, em Toledo, em Valencia, em Madrid, a missa se celebra. Os sinos tocam, as pessoas vêm. E todas as pessoas vieram porque Nosso Senhor as atraiu. E as atraiu assim: quando elas forem, Ele lhes falou na alma de modo especial, e falou nos termos que falei, e eles voltam para casa com aquilo que eles não percebem claramente, mas que é uma especial mensagem do Menino Jesus para eles.

Reúnem-se todos em torno de uma mesa, e há uma sinfonia, todos estão de acordo. Qual é esse acordo? É a harmonia entre os vários aspectos do Menino Jesus que estão na alma de cada um. Forma uma espécie de sinfonia, estão todos profundamente de acordo. Esta é a paz da noite de Natal.

É preciso dizer que o Natal leva a sua alegria, e nisto está uma das manifestações da força dele, ele leva sua alegria também nos lugares onde está a tristeza. O Natal não é só o Natal dos alegres. O Natal é também, em larga medida, o Natal dos tristes. Os senhores podem imaginar um prisioneiro que está na Lubianka, a sinistra prisão comunista da Rússia, e que por ouvir tilintar muito longe um sininho, percebe que aquela é a noite de Natal, da única igreja que está aberta em Moscou, talvez uma igreja da I.O. [“igreja ortodoxa”, n.d.c.], mas é uma igreja que toca, e ele fica se lembrando: agora é noite de Natal...

Do fundo de sua cadeia, de seu isolamento, num lugar onde só o cercam ódio, perseguição, necessidade, tristeza, onde todo momento é de aflição e toda aflição faz nascer mais uma angústia, mais uma aflição, ali esse homem, se tem fé, se ajoelha, e diz: “Senhor, é vosso santo Natal.” E uma alegria penetra através daquelas pedras intransponíveis, uma alegria penetra através daqueles tetos de cimento terríveis como se fosse o teto de um cárcere enterrado no chão. E ali o homem reza e ele se lembra: Stille Nacht, helige Nacht, alles schlaft, ein sam wacht, nur das traute hoch heilige Paar... “Meu Deus, não é só o traute hoch heilige Paar que está vigiando, está aqui também esse prisioneiro. Olhai, meu Deus, para meus pulsos: estão carregados de cadeias. Quando me movo, meu Deus, ouço o arrastar dos ferros no chão. São os ferros que prendem meus pés, são os ferros que baixam dos meus pulsos até o chão, para fazerem barulho enquanto eu ando e avisarem que venham me perseguir como um bicho, me trancafiar, porque eu não tenho direito de viver fora dessas quatro paredes. Meu Deus, tudo isso é verdade. Quanto tempo ficarei aqui? Também não sei. Uma coisa só eu sei: é quando chegar a noite do meu Natal, vós vireis e me chamareis, eu nascerei para o Céu.

“Dai-me, eu vo-Lo peço por meio de Nossa Senhora, dai-me coragem até lá. Mas permiti que eu repita Vossa oração: “Se for possível, afaste-se de mim este cálice, fazei com que de um momento para outro venha uma libertação: amanhã eu ouça os passos no corredor de alguém que entra com voz normal e alegre, fala a língua do meu país, chega perto, o carcereiro abre, é quem? Um adido da embaixada do meu país. Eu fui chamado e o governo soviético me entregou, o avião me espera, dentro de uma hora eu estou voando, a Lubianka está longe.

“Meu Deus, depende de Vós que isto se realize, porque Vós podeis fazer tudo. E Vós que fizestes com que São Pedro Armengol ficasse com a corda em torno do pescoço, Vós podeis fazer com que eu seja o Armengol desse cárcere durante muitos anos. Se quiserdes, fazei-o, mas Vós fizestes voar São Martin de Porres. Meu Deus, mandai um anjo arrebentar as grandes e que eu saia voando. Eu não conto para ninguém, eu prometo...”

Quanta esperança, quanta alegria, quanta resignação, quanta solidão, quanta dor!

Os senhores já se lembraram talvez, na noite de terça-feira, de rezar por essas almas perseguidas?

Nós raspamos pela perseguição. Por pouco meus filhos, irmãos dos senhores da Venezuela, dois queridos filhos brasileiros entre eles, [não] andaram pela prisão. Por pouco não andaram pela prisão. Eles sentiram o odor da prisão, eles sentiram o horror da prisão. O Natal deles se enriqueceu com uma nota que é uma riqueza. Eles compreenderam a intensidade da dor, compreenderam a intensidade do sofrimento.

Por que não rezarmos? Não digo tanto por eles dois diletos que estão aqui conosco, mas por aqueles que estão longe, e que estão passando o Natal fora de sua sede, fora do nosso convívio, convivendo entre si é verdade, mas em que condições? Por que não lembrar deles de um modo especial na noite de Natal? Nós que ao lembrarmo-nos deles agora nos comovemos?

Eu concluo lembrando... o tempo irreparável já fugiu. Eu dizia que há uma coisa que me toca especialmente quando eu faço reflexões dessas; é o que eu posso oferecer numa noite assim de conversa, porque isso é mais uma conversa, não é uma conferência, isso é uma conversa, e que se abre a alma e se diz o que tem dentro, desembalando o conteúdo sem muita ordem, como ele está.. Mas afinal de contas, assim é a coisa: Nossa Senhora prometeu que se os homens se convertessem, se os homens voltassem atrás naquele caminho de perdição, a Rússia se converteria. E Ela deixou assim meio entendido que para o caminho dEla se realizar, a Rússia deveria se converter.

Os senhores já pensaram quantas almas há na Rússia esperando essa hora de conversão? Almas na Sibéria, almas em lugares terríveis, sofrendo frios inimagináveis, mas que são as sementes de Deus na Rússia, são as esperanças de Deus na Rússia. Quem sabe se há “enjolras” [jovens] ultramontanos ou ultramontanáveis na Rússia? “Enjolras” católicos trazidos para lá, de outras regiões; ou nascidos lá, porque também tem uma parte da população que é católica na Rússia, é uma parte minoritária, mas é católica na Rússia, mandados para a Sibéria, e quem sabe se alguns são destinados a algum dia servir para a TFP?!

Não lhes dá vontade de rezar para Nossa Senhora especialmente para eles na noite de Natal? Não dá vontade até de, se for preciso, tomar uma notinha por escrito para não esquecer, para quando chegar a hora da Consagração, lembrarem desses “enjolras” nossos; antes de tudo dos da Venezuela. Mas depois de todos os outros especialmente atormentados e perseguidos pela terra, e que ainda podem ser de Nossa Senhora. E depois desses especialmente que estão para além da Cortina de Ferro e sobre os quais Nossa Senhora vela especialmente, dos quais Ela tem o desígnio que um dia ainda sejam da TFP russa, da TFP ucraniana, da TFP finlandesa, da TFP quirguiz, sei lá de que Armênias, de que lugares, desta TFP que eles venham pertencer?

Então rezar por esses e assim eles sentirem um brusco alívio, um brusco desafogo, eles não saberão que irmãos deles no longínquo Brasil, que eles devem imaginar quentíssimo, um suadouro permanente – os senhores devem estar achando também por minha culpa  –  que nesse longínquo e quente Brasil houve almas que rezaram por ele. Um dia, no dia do Juízo se saberá.

Aí estão as reflexões para o Natal. Meus caros, com isso nossa noite...

(Fatinho)

(Aparte: O senhor ia dizer porque a oração de Nossa Senhora era também terrível).

Era o seguinte: há um padre brasileiro, Júlio Maria, que escreveu um livro que eu nunca tive tempo de ler, mas que eu sei que é excelente a esse respeito. Ele analisou a gestação do Menino Jesus em Nossa Senhora, a formação do corpo sagrado do Menino Jesus em Nossa Senhora. Se não me engano ele sustenta a tese de que, desde que esse corpo começou a existir, já teve inteligência, já recebeu alma – isto é certo – quando se constituiu, foi hipostaticamente unido à Santíssima Trindade.

E Nossa Senhora  –   ele estudou o processo humano da gestação  –  à medida que o corpo dEla ia dando elementos para o corpo dEle, Ela tinha conhecimento disso, e Ela fazia o dom que o corpo dEle fazia, ela fazia o dom para gerar os olhos, para gerar o coração, para gerar... amando cada parte que seria a expressão da divina santidade dEle.

Quando Ele esteve constituído, foi o momento de despedida. Aquele convívio único dEle nEla ia cessar. E, para Ela, uma despedida; para Ele, também. Os senhores imaginem, deixar o claustro de Nossa Senhora, belo como um céu – não se esqueçam de que Ela era concebida sem pecado original e que, portanto, o corpo dEla não tinha nada do prosaísmo dos corpos que andam por aí, nada caminhava para a podridão, nem nada disso, é uma outra coisa  –  deixar aquilo para viver no meio dos homens... que exílio, que exílio!

Nesse momento, o que se teriam dito Ele e Ela? É bonito imaginar. Esse era o lado terrível que eu falava.


Bookmark and Share