Plinio Corrêa de Oliveira

 

O comunismo quer levar todos

à miséria e arrasar com qualquer

forma de civilização para produzir

um mundo semi-selvagem

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia de 18 de setembro de 1985

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

A TV Globo retransmitiu longa gravação com declarações de Fidel Castro feitas a jornalistas no "Palácio das Convenções" de Havana (9-7-1985), juntamente com algumas "entrevistas" realizadas na capital cubana por aquele mesmo canal de televisão. Abaixo, algumas capturas de tela da seção anteriormente mencionada.

 

 

Meus caros, está tardíssimo. Faltam três minutos para uma hora. Evidentemente é preciso comprimir as impressões que tudo isso deu. Há um pequeno episódio aqui do filme, que merece ser destacado. Porque a partir desse episódio se pode ter uma ideia do conjunto de tudo o que nós vimos.

Há um determinado momento em que uma pessoa está falando na rua. É um jornalista, uma jornalista está falando na rua, não me lembro bem. E vem a notícia de que o povo fez um aviso ao governo de que estavam conversando ali. E que o governo imediatamente mandou pessoas para ver o que estava se passando. E isso é oficialmente reconhecido lá como sendo assim. Naturalmente o povo que fez esse aviso é a polícia, entra pelos olhos. E o regime é tão pouco seguro de si, que conceda tão poucas liberdades que, onde quer que alguém esteja conversando com populares, estrangeiro ou cubano, imediatamente vem uma notícia para a polícia. E logo depois a polícia quer estar lá presente para ver o que está se passando.

Agora, se isto é assim, a gente pergunta: será que a polícia não sabia que ia ser feito este filme? Bem, se a polícia sabia que ia ser feito este filme, não foi necessário autorização dela para que esse filme saísse? Se foi necessário autorização dela, os senhores acreditam que o filme tivesse uma orientação contrária à dela? Se ela, se a polícia não queria uma orientação contrária à do governo cubano, o que é que ia fazer? Ingenuamente deixar os repórteres falarem com o povo? Quem pode acreditar numa coisa dessas?...

Quer dizer, colocar sempre gente ali perto que bancava o povo e que respondia. É uma coisa evidente! O que tanto é mais verdade quanto, em torno dos entrevistadores e entrevistados, havia sempre um magote pequeno de gente. Portanto, gente que poderia ser toda ela da polícia, ou gente popular que recebeu aviso prévio: “Pare agora aqui e fique olhando e não diga uma palavra! Porque vem gente entrevistar – um brasileiro, um venezuelano, sei lá quem – vem entrevistar aqui e o pessoal nosso vai responder. Vocês não se metam!”

Houve silêncio completo e a entrevista saiu o que a polícia queria! Quer dizer, por este pequeno episódio, que eu não sei como eles deixam transparecer, eu não compreendo como é que eles deixaram transparecer. Por este pequeno episódio nós nos damos conta da realidade. A realidade é a seguinte: este filme deveria ser chamado “conversando com a polícia”!

Também essas palmas que Fidel Castro recebeu, é... Os senhores dirão: “Bom, mas são jornalistas estrangeiros...” Está cheio de jornalista brasileiro aqui, que se pagasse uma viagem para Cuba, estava perfeitamente disposto a estar lá e bater palma. Isto não é problema que se apresente. Tudo é totalmente artificial. Como o Sr. X. acentuou bem, o centro da cidade apresentado sempre de longe, os prédios de longe e com perspectivas urbanísticas bonitas, correspondendo ao urbanismo antigo, da Cuba capitalista – estes prédios vistos de longe dão impressão de uma Cuba que não é real. Como também os panoramas marítimos. Os panoramas marítimos, o mar é o mesmo e são realmente muito bonitos. Isto não é mérito nem demérito do governo. Isto é... É mais ou menos uma mesma coisa que se uma pessoa fosse culpar o governo brasileiro, porque os arredores de Brasília são feios. Não tem propósito, são feios mesmos. Porque foram fazer a capital lá, isto é outra questão. O governo não pode mudar essa irremediável feiura.

Um governo passado, não sei se foi o Juscelino, mandou fazer ali, para alegrar um pouco o ambiente, uma espécie de lago. Saiu um lago... comum, sem graça... a gente pergunta: “Essa aí é a banheira do gigante?” O que é que vale isso? Não vale nada! O pulchrum não está na mão do governo, nem a feiura está na mão do governo. Está na mão de Deus.

Bem, o que isso sim impressiona, é o aspecto dos quarteirões que não estão próximos do centro e não são mostrados para turistas. Há um elemento comum entre os quarteirões para turistas – digamos os quarteirões “sala de visita” – e os quarteirões para a pobre família flagelada cubana: é que são ruas sempre com muito pouca gente. Este lado impressiona. Em certo momento o entrevistado responde ao entrevistador que sim, é tarde, toda a população está no trabalho, etc. Onde é que está trabalhando essa população?

Quem trabalha, num lugar onde se trabalha ordenadamente, não trabalha apenas dentro de casa. O trabalho supõe trânsito. Aonde não há trânsito, não há trabalho! Os senhores não podem imaginar o seguinte: o centro velho está com o trânsito interrompido, mas trabalhou-se intensamente. Não tem sentido. Aqui em São Paulo não tem sentido. Se o trânsito está interrompido, não tem trabalho, acabou-se.

O trânsito lá é raríssimo, num caso ou noutro. Não é só de automóveis. Ele explicou aí que automóvel não tem porque os EUA não exportam, uma bobajada. Não é só isto. É que mesmos pedestres não se veem quase na rua. A gente tem impressão de uma cidade que foi esvaziada para ter pouca gente, muita gente foi mandada para o campo, porque a cidade está caindo aos pedaços! Porque para manter uma administração comunista nessas condições, é preciso ter muita gente na agricultura e pouca gente na cidade. Na cidade, quem é que mora? É gente que faz comércio e indústria. Fundamentalmente é isto que mora numa cidade. Comércio exterior não tem... Porque o que é comércio? É receber uns, de vez em quando, uns cargueiros russos, umas motocicletas avariadas, uns automóveis com papel de seda, que descem e circulam pouco. E embarcam uma ninharia de coisinha que eles têm. Gente que está na miséria não comercia. Para trocar, é preciso ter o que trocar. Não tem o que trocar, então não há nada.

Então, o que é preciso? É preciso fabricar víveres. E o fabrico de víveres se faz deslocando a população para o interior. É esta a impressão que me dá a situação cubana.

Vai mais longe a coisa. O Sr. X. mostrou uns prédios que caem aos pedaços. E em alguns desses prédios foram feitos mezzaninos para morarem ainda mais famílias. Isto dá impressão de uma população repleta, não dá impressão de uma população dispersa pelo campo, ao contrário do que eu estou afirmando. Mas é preciso compreender o seguinte: aqueles prédios foram feitos há perto de 20 anos atrás, quando Fidel Castro subiu ao poder. Os senhores imaginam como seria São Paulo se tivesse parado com as construções que tinha vinte anos atrás. Estava estalando, porque a população vai sempre crescendo, sempre crescendo.

E ainda que, portanto, os prédios estejam estalando, ainda nesse caso é preciso mandar gente para o interior. Os senhores dirão: “Então a cidade está cheia”. Eu digo: aqui vem minha impressão. É de que muitos prédios estão inutilizados. Não se usam fora nem se usam dentro. Estão inutilizados. E que dentro desses prédios existe uma verdadeira miséria. Que nessas cidades se trabalha pouco. Porque quando a produção agrícola é pequena, a comercial e industrial é quase nula. O que existe é um pouco de burocracia, tocada com preguiça, por população mal paga. É o quadro. E isto eu suponho que explique a impressão de conjunto de desolação, que aquilo dá.

Agora, os senhores dirão: “Está bem Dr. Plinio, mas não seria possível que a Rússia, que tem apoio de grandes industriais,  comerciantes e banqueiros norte-americanos, já está provado que são eles que em grande parte mantêm o regime russo, o regime polonês, etc., etc., não seria possível eles darem algum dinheiro para Cuba, para aquilo se arranjar um pouco mais e não dar uma impressão tão péssima?”

A isso se poderiam fazer várias objeções. A primeira das objeções é a seguinte. Quem disse que eles querem realmente dar esta impressão? Nós estamos diante de um mistério. E aqui os senhores puderam pegar esse mistério com a mão. Os senhores estão vendo que a contradição entre as duas Cubas, a Cuba da reportagem encomendada e a Cuba da reportagem real, é espantosa! Os senhores estão vendo que ali, qualquer um com um pouco de experiência da vida, nota a pobreza daquela população. Os trajes no último do rapado. Isto é o pessoal que apareceu na câmera. Quantas vezes aparecerá com trajes rasgados, ou sem traje, traje diminuto etc., etc., quantas vezes?

Bom, isto eles poderiam aliviar e remediar um pouco, por algum tempo, não tem dúvida nenhuma. Mas eles quererão isto? Os que fazem o comunismo, sabem que a pobreza é o resultado do comunismo. Mas notem bem, hein? Não é o resultado involuntário, que eles gostariam de não produzir. É o resultado voluntário. O desejo deles é levar o mundo todo para a pobreza! É arrasar com qualquer forma de civilização para produzir o mundo hipificado, semi-selvagem, completamente dominado por forças “X”, que não vem ao caso de tratar aqui no momento. Mas que tem o domínio psicológico, o domínio hipnótico, por assim dizer, da nação. Por cauda disso não lhes convém.

Depois, e sobretudo, o seguinte. Passa um filme assim para um público brasileiro do dia 18 de setembro de 1985. Agora pergunto: isto produz nas pessoas toda a impressão que produziu em nós? Não produz. Tanto é que a TV Globo achou que devia filmar coisas dessa natureza e filmou. Não precisava desse contraste para perceber o irreal de tudo aquilo – eles filmaram e não indignou ninguém. Porque há uma espécie de atonia, uma espécie de insensibilidade generalizada no mundo inteiro, que faz com que todo mundo vai se tornando indiferente a tudo. Essa é a realidade. E que se passar isto aqui, não causará reação.

 

Eu nunca assisti um filme com Fidel Castro falando, por razões que os senhores podem imaginar!... Assisti agora [feita em Havana, no “Palácio” das Convenções, a 9 de julho de 1985 n.d.c.]. Achei... não entra aqui o intuito de injuriar, é a descrição serena do que eu acho. Achei que é um palhaço muito talentoso! Não que ele vise ser cômico, o que é uma nota característica e indispensável do palhaço. Mas é que ele visa a ser animado, ele visa a entreter o homem átono moderno, com a exibição de uma vivacidade, de uma reatividade, sempre à flor dos nervos e por debaixo da pele. De maneira que diante de tudo ele reage muito expressivamente. Ele não tem um minuto em que ele não seja muito expressivo.

Com uns gestos que, infelizmente para ele, se repetem. Ele põe a mão na cabeça para dizer que está pensando; quando ele está com dor de cabeça, ele põe as duas mãos aqui. Não me lembro bem que outra forma de macacagem ele faz. Depois, ele sabe tomar certas distâncias em relação ao público, andar de um lado para outro. Me lembro um momento em que alguém estava fazendo uma pergunta um pouco longa para ele. Ele então estava andando de um lado para outro, poucos passos, com uma fisionomia profundamente atenta, assim meio preocupado e profundamente atento. Quando o homem parou, ele parou também e deu uma resposta assim, como quem passava da atenção, assim de concentração do espírito para uma explosão de vivacidade. E disse isso, aquilo, aquilo outro. Esses jogos assim o público gosta muito de ver.

E é preciso dizer – é preciso dizer – para quem se contenta em assistir uma estrionagem, uma palhaçada assim de segunda ordem, ele é “entretenido”. Agora, as coisas que ele diz são outro caso. Ele não diz, em nenhum momento, nada que não seja a mais rasa banalidade! Para ser compreendido pelo público.

Os senhores me dirão: “Mas Dr. Plinio, o que o senhor está imaginando, que para o público se faz conferência de professor universitário? Para o público se faz isso mesmo”. Eu digo: é verdade, eu sei bem. Mas ele revela uma tal familiaridade com esse papel de estrião [palhaço] para o pequeno público, para o público quase analfabeto, um tal talento para isso, uma tal adequação de toda sua personalidade para falar com analfabeto, que a gente tem a impressão que ele pertence à grei dos analfabetos. É demais a fusão dele com o ambiente dele. A gente vê que há um ponto de contato, uma chegada...

Eu chamo atenção para uns pequenos pormenores, que indicam os grãos de farelo de tradição nisso, que no conjunto eu não hesitaria em qualificar de um inferno. Em primeiro lugar, esta canção aqui, ditatorial ao último ponto, e que a TV Globo não se peja de fazer cantar, e depois fala da ditadura militar no Brasil... Isto aqui é pior do que qualquer ditadura militar do Ocidente, em qualquer lugar.

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Letra da música que é o fundo da entrevista a Fidel Castro: “Al que asoma (levanta) la cabeza, duro con él, Fidel, duro con él. Caballeros, no hay razón, no hay razón caballeros, que se pongan peros (objeções) a nuestra Revoluciión! – Que comienza a seguir aquí, conspirando a todo tren, recorde por su bien, que el paredón sigue allí... / Quien piensa en algún mañana, mejor que lo piense bien, que aquí sabe cada quien, quien vive en su manzana ("manzana" é quarteirão; então se sabe quem vive em cada quarteirão).

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Então, nessa canção me chama a atenção que interpele o povo de “cavalheiro”! Expressão que indica ainda a permanência ainda velha da cavalaria! Nem é do Ancien Regime, é da velha cavalaria antiga. Em vez do clássico “camaradas”. O que só é tolerável porque em alguma medida atende a algo que, a um mínimo que a opinião pública exige.

Depois também me chamou a atenção uma outra atitude. Aquele homem entrevistado lá, deitado, ostenta a irreligiosidade mais completa. E não é este o primeiro sintoma que me chega às mãos, para suspeitar, não digo que afirme, porque não sinto que os dados que tenho em mãos sejam suficientes para uma afirmação, mas pelo menos para suspeitar o seguinte. Na apresentação pública feita pelo comunismo de suas relações com a Igreja, nós estamos passando de uma posição para outra posição.

A primeira posição, no tempo de Lenin, até depois da Segunda Guerra Mundial, foi de perseguição de morte. Depois veio a Ostpolitik vaticana, uma certa distensão. E eles começaram a ostentar uma certa consideração e às vezes uma certa compreensão para com a Igreja e para com todas as religiões. Mas ultimamente, com essa torrente de blasfêmias que está sendo solta no mundo, eu fico com impressão de que a coisa está mudando, e que eles vão ostentando talvez, cada vez mais, seu ódio à religião. Mas a religião vai ficando cada vez mais subserviente a eles. Eles dão a ela cada vez mais pontapés e ela lhes lambe cada vez mais as botas... O que configura arqui-caracteristicamente uma derrota. Porque quando as relações entre duas pessoas, ou duas instituições, chegam a este ponto, que passam de uma luta de morte para uma paz mais ou menos cordial, mas desta paz degringolam para esta situação em que um bate e outro beija a chibata que bate. E oscula os pés de quem lhe bate a chibata – é a derrota completa! É a descrição característica de uma situação de derrota. Eu tenho impressão que é o momento de levantar o problema se nós não estamos caminhando até lá.

Bem, última consideração no gênero é a seguinte. Notaram que Fidel está de gravata. Que ele usa um traje curioso, que é um uniforme militar, surrado – não surrado demais, mas surrado – amarrotado, que há muito tempo não vê um ferro de passar roupa, nem um pano para limpar mancha... Enfim, com uma espécie de platina, um toco das antigas dragonas nos ombros e uma gravata que me pareceu preta. Não tenho bem certeza, mas me pareceu preta. Se não é preta, é de uma cor muito escura. Esta gravata de cor escura – aliás, suja, amarrotada, solta, com laço dado com relaxamento – ainda é uma subsistência da gravata. Mas é uma subsistência da gravata que fica indicando a conveniência de que o chefe de Estado de vista um pouco acima do nível dos seus subordinados. Porque em todo o filme vocês não viram ninguém de gravata. Ninguém de paletó, eu não vi! É só ele! Vaga, vaga subsistência do velho princípio de que o rei deve vestir-se melhor, mais esplendidamente, do que a massa do povo. É uma vaga reminiscência.

Para os senhores verem até que ponto estas coisas duram, levam tempo para morrer. E até que ponto essas tradições são firmes, é preciso fazer dentro deste inferno alguma concessão a elas. De uma coisa os senhores não tenham dúvida: tudo isso é calculado, rigorosamente calculado.

Para terminar, enquanto o filme ia sendo passado, eu ia me sentindo cada vez mais num inferno. E tenho uma impressão de que terminado o filme, na medida em que estamos conversando entre nós, eu me lembro do verso de Dante quando saiu do inferno: “E afinal voltamos a rever as estrelas...” Está aqui atrás de nós a Maris Stella [imagem de Nossa Senhora, n.d.c.], que saudamos cotidianamente nas nossas orações.

Agora, isto posto...

(Aparte: o Sr. poderia contar os primeiros contatos que o senhor tomou com o comunismo, quando o senhor ouviu falar pela primeira vez, etc.)

O comunismo subiu na Rússia em 1917, com a queda do Czarismo etc. Estas reações, sobre estes fatos, eu não peguei. Eu tinha 9 anos, um pouco menos, 8 anos, devem ter comentado na minha presença, mas não guardo memória. Mas guardo memória de dois ou três anos depois, ouvir comentar o comunismo. E a imagem que se punha do comunismo era bastante próxima da realidade. E bastante vazia ao mesmo tempo, porque era apresentado como um regime que tinha feito descer sobre a Rússia – os países satélites ainda não tinham sido entregues de presente por Roosevelt à Rússia, só depois da Segunda Guerra Mundial é que se deu isso – sobre a Rússia tinha descido uma noite sinistra. A gente tinha impressão dessas noites polares, onde nunca faz dia. Essa a impressão que eu, na minha infância, tinha da Rússia.

Tinha impressão de um caos tal, que de vez em quando se encontrava na rua um carro parado, um bonde quebrado, uma coisa assim, porque os trabalhadores tinham se recusado a trabalhar e ficava aquilo jogado por lá. De vez em quando um pedaço de móvel quebrado, de casa fina, que foi roubado, depois queimado... Coisas assim, normalmente por lá. Uma tirania feroz, todo mundo com carranca tremenda e trabalhando pouco, com tristeza, para viver mal.

 Nesse ponto, o quadro é bem próximo da realidade. Está apresentada, naturalmente, com as cores da imaginação infantil, mas é bem próximo da realidade.

No que o quadro não era próximo da realidade, nem em torno de mim se via assim, era a gravidade do princípio da propriedade privada negado. A gravidade da dissolução do casamento, decretado pelas leis russas. Falavam, isso sim, da perseguição religiosa. E falavam com muita indignação humanitária, porque o padre era um ente humano e não podia ser tratado assim. Então aquela morte causava uma má impressão. Mas uma indignação expressão, porque era a religião assim perseguida, essa indignação eu não percebi. Pode ser que houvesse, mas eu não guardo memória dela. Pode ser que houvesse.

Agora, por outro lado, eu tinha impressão que isso tudo era o ponto terminal de uma evolução em que eu via o Brasil empenhado. E eu não posso me esquecer, creio que já contei esse fato aqui, uma vez eu estava a caminho do colégio São Luís, passando de bonde em frente ao cemitério da Consolação, naquela rua que fica no cemitério, imediatamente rumo à Paulista, a primeira que desce ali e vai para a rua Mato Grosso. Naquela rua eu vi um prediozinho, casinhola qualquer, em determinado dia, que tinha uma placa escrita: PC brasileiro, reforma agrária. E não sei como, intui que a reforma agrária é a partilha das terras. E me lembro que fiquei indignadíssimo!

Notem que meus pais não tinham terras, minha avó não tinha terras, isso em mim não prejudicaria nada, visto assim imediatamente, não prejudicaria nada. Mas era a ideia da partilha, que rumava para a ideia da igualdade. Me dilatou um mau odor de pólvora e de imoralidade da Revolução Francesa. E eu pensei: isto precisa acabar!

Veio acompanhado de uma reflexão triste: a palavra agrária diz respeito a campo. Eu nunca entenderei os problemas do campo. Já tive várias vezes lá, só de pegar na grama, já entendia que... não entendo aquilo, aquilo é um outro mundo para mim. Pode dizer que é muito bonito, está bem, não vou brigar com ninguém por causa disso, mas eu não entendo! Não nasci lá, não vivi lá, não é meu mundo! O mar eu entendia!...

Eu dizia: para argumentar contra a reforma agrária, eu nunca saberei usar os problemas do campo. E provavelmente não terei gente que me estude esse problema e me dê aquilo que não é próprio a mim de saber e aprender. Mas depois pensei: de qualquer jeito se dará um jeito, porque Nossa Senhora intervirá! Sou co-autor de três livros, nos quais, pela graça de Nossa Senhora, nunca faltou uma excelente parte econômica sobre os assuntos do campo!


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