Plinio Corrêa de Oliveira

 

O que é o heroísmo, seus diferentes aspectos e os mais fundamentais de todos

 

 

 

 

 

Auditório São Miguel, Santo do Dia, 11 de novembro de 1989 – Sábado

  Bookmark and Share

 

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

 

Meus caros, com "H" ou sem "H", o heroísmo é uma grande coisa! É com muito gosto que eu aceito o pedido de falar sobre essa matéria.

No que consiste propriamente o heroísmo?

Os senhores falaram do heroísmo dos cruzados, dos religiosos, dos mártires e de uma porção de outras formas heroísmo. Mas, o que há de comum em todas as essas formas de heroísmo? Por exemplo, o heroísmo dos mártires. No que há de comum entre essa forma de heroísmo e a dos cruzados? Quase se poderia dizer que são opostas, porque o heroísmo do cruzado consiste em combater, em matar, em ir de encontro à morte, em lutar e fazer força; o dos mártires, pelo contrário, consiste em se encolher, em esperar a morte, em não recuar diante dela, mas não avançar para ela. Então, uns avançam e outros não avançam. Nenhum recuam! Mas o que há de comum no heroísmo de um e outro caso? O que há de comum nesse heroísmo com o religioso?

* Cenas de heroísmo e TFP

 

Há uma cena [dos slides que foram passados] muito bonita de um religioso dando ordens ao seu subordinado. Este, de cabeça baixa, recebendo-as para as cumprir. Há uma cena muito bonita, também, de dois religiosos vestidos de branco – suponho que sejam da Ordem Cisterciense – um ajoelhado e outro de pé falando.  O que está ajoelhado oscula uma parte do hábito do superior, enquanto ele está dando, ou uma diretriz, ou consolando-lhe a alma, ou passando uma repreensão. Em qualquer dos três casos, oscula o hábito daquele que lhe está falando, em sinal de aceitação daquela ordem, daquela diretriz, daquela repreensão: é o completo sacrifício de sua alma para Deus. Sua vida inteira é uma vida de obediência. Quando nos mandam fazer uma coisa, em geral é por que não gostamos; porque para se mandar o que um sujeito gosta, não é preciso mandar, ele faz. Então, viver de obediência é viver de fazer o que não se gosta.

No que há de heroísmo nisso? Formas de heroísmo tão diferentes, como a do grande Carlos, cavalgando pela Europa, desde Santiago de Compostela, a duas horas do Oceano Atlântico, até as margens do Reno, até as desembocaduras dos rios da França que descem e por onde entraram os normandos; depois, descendo até Roma, a Lombardia...

Qual a forma de heroísmo comum a tudo isso? Sobretudo, a pergunta que foi saudada por um "oh!" geral: o que é o heroísmo da TFP? As cenas da TFP apresentadas aqui são das mais bonitas. Evidentemente, só em participar de uma cena bonita não há heroísmo. Por que há heroísmo em participar de uma cena bonita, pertencendo à TFP?

Qual, então, o denominador comum, quer dizer, o elemento comum a todas as formas de heroísmo, de tal forma que, em se o estudando, se percebe o que ele é?

* No que consiste o heroísmo

O heroísmo consiste no seguinte:

Todo o mundo tem coisas, na vida, difíceis de fazer, e que deve fazer frequentemente e com grande dificuldade. Porque é difícil, há uma espécie de relutância em fazer; às vezes, um verdadeiro horror em fazer. Mas, faz-se. Porém, não somente se faz, porque isso é o mero cumprimento do dever. Contudo, faz-se de tal maneira que se resolve a fundo tomar o hábito de fazer, que se faz sempre e acaba-se fazendo com uma certa alegria e uma certa satisfação pelo gosto de se vencer e dobrar a si mesmo, fazendo, fazendo e fazendo! Eis um dos elementos do heroísmo.

Tomem, por exemplo, um rapaz da idade dos senhores. Nem todos gostam extraordinariamente de estudar. Mas deve estudar! Então, um toma o hábito de estudar e de tal maneira que, para ele, estudar fica sendo uma segunda natureza. No fundo, em nenhum momento gosta, continua a não gostar, mas como é seu dever, faz, faz e faz, produzindo-se uma espécie de frescor na sua alma, uma aragem de consciência tranquila, de glória do dever cumprido, sensação de sua própria probidade, de sua própria honestidade que faz com que o indivíduo se sinta bem dentro de sua própria pele. Muito mais do que isso, de algum modo sente que de Deus parte uma luz que o cobre e que lhe dá a recompensa, já nesta Terra, por aquilo que vem fazendo.

Quanto mais difícil é essa coisa fazer, tanto mais o heroísmo consiste em tomar o hábito de a fazer, de maneira tal que, embora difícil, se transforme numa segunda natureza. Aí houve uma renúncia completa, houve dedicação inteira, houve heroísmo que se firmou. Eu dou um exemplo com nossa vida de sócio, de cooperador e de corresponde da TFP.

* Praticamos as virtudes que nosso século detesta

Há uma coisa, sem dúvida – ainda hoje comentava isso, depois da Reunião de Recortes, entre lábios com alguém – nenhuma, em nossa época se fala muito contra a discriminação. Se uma pessoa é posta de lado no círculo que frequenta, ela é discriminada. Ora, isto é contra o espírito de nossa época: não se pode pôr ninguém de lado, deve-se acolher todo o mundo, reconhecer-se a cada um o direito de ser como é e ser afável com todos. O contrário é não ter coração, não ter bondade, etc. Então, o espírito anti-discriminacionista caracteriza nossa época.

Porém, se caracteriza em favor de tudo quanto é crápula, de tudo quanto é canalha, de tudo quanto é sem vergonha. Não se caracteriza em favor de quem pratica a virtude. Assim, um rapaz pode ser um drogado, e logo todo o mundo diz: "Ah, coitado é um drogado... Ele caiu nisso, vamos ter pena dele..." Se se trata de um rapaz que é casto e se sabe disso: discriminação! Casto não se pode ser. Há uma discriminação.

Se se diz: "Fulano caiu no comunismo". Logo se ouve: "Ah, coitado... Que coisa lamentável... Vamos ter pena dele... Sorrir-lhe, agradar-lhe, para ver se se o traz para nosso terreno. Isto é apostolado". E se nós dizemos: "Eu sou da TFP" – discriminação! E logo vociferam: "Anticomunista fanático! Intransigente! Não se pode absolutamente suportar gente assim!"

Nós praticamos as virtudes que nosso século detesta. E, por causa disso, temos obrigação de viver detestados por nosso século. Ora, isso supõe de nossa parte uma certa conduta. É esta, que nos impõe deveres difíceis, deve-se tornar para nós uma segunda natureza. Quando adquirimos isso como hábito, com o gosto de enfrentar o adversário – "Você pensa que me intimida, pensa que me achata, pensa que me diminui? Estou aqui de pé, de voz forte, na minha estatura inteira; vamos ver, eu mantenho a minha posição!" E fazer isto de tal maneira que o adversário perceba que se está disposto a qualquer luta; está disposto a enfrentar de cabeça alta qualquer vaia, qualquer ridicularização, qualquer coisa, com naturalidade, tomando aquilo sobre si como quem está habituado a numa luta e numa guerra a tomar bombas e qualquer coisa... Isto é heroísmo!

Cumprir um dever penoso, cumpri-lo tão integralmente que se torne um hábito, isto é o heroísmo. Para isto é preciso que o hábito seja tal que nem o estranhemos mais e se o faça com toda a naturalidade. Este é o heroísmo.

* Eu, perante eles, vou representar tudo quanto eles odeiam!

De tal maneira que não se tenha saudades do tempo em que não se era discriminado; não tenha inveja daqueles que não são discriminados e que levam uma vida mais mole do que nós. Mas compreender que, eu, Plínio Corrêa de Oliveira – ou, eu, qualquer um dos senhores que está aqui – aceitei sobre mim isto: o mundo de hoje odeia a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele odeia a seriedade, o sofrimento, a lógica, a coerência, a castidade e a fé! Está bem. Eu, perante eles, vou representar tudo quanto eles odeiam! Vou ser o símbolo vivo de tudo quanto desprezam. Apresento-me de corpo inteiro. Riam-se! Escarneçam! Ameacem! Façam o desaforo que quiserem, eu sei como responder! Ainda que eu não o soubesse, não baixaria a minha cabeça. Ainda que não tivessem nem dom para isso, ainda que não tivesse nenhuma habilidade, fosse uma pessoa de voz sumida, de presença apagada, insignificante por natureza, pela minha deliberação, eu vou-me impor. Está acabado!

* O heroísmo ou se faz num só lance ou não se faz!

Porém, já me habituei a ser escarnecido, já me habituei a que me tratem mal, já me habituei a que me desprezem, já me habituei a que finjam a que não notam em mim qualquer qualidade, já me habituei às injustiças de toda a ordem, porque é partilha nesta vida. Eu fui chamado por Nossa Senhora para esta vocação. Eu a quero, porque eu compreendo que a alternativa é: ou deixar a causa católica abandonada, traída, jogada no chão, ou inclinar-me, osculá-la como quem oscula a Cruz de Cristo, levantá-La, pô-La sobre meus ombros e caminhar, imitando assim a Nosso Senhor Jesus Cristo, meu Divino Salvador.

* Rumo à Cruz de Cristo, ou se corre ou se voa!

Por causa disso, não ir-me pondo nessa situação de proscrito, de exilado da Terra – que é o que nós somos, não tenham dúvida – assim, aos poucos... O heroísmo ou se faz num só lance ou não se faz! Se uma pessoa avança aos poucos rumo ao que é pesado, rumo ao que é difícil, não chegará. Rumo à Cruz de Cristo, ou se corre ou se voa! Quando se anda devagar rumo a essa Cruz, estamos a ponto de a abandonar e de trair o Nosso Divino Mestre. Isso não queremos fazer!

* Devemos ser exímios no combate ao nosso defeito capital

Nas, menores coisas, se deve notar isso. Por exemplo, um de nós pode notar que tem um gênio muito irritadiço; e que faz com que a sua presença seja um elemento de desordem no êremo, na camáldula ou, enfim, em qualquer outro ambiente em que se vive. É uma coisa que pode acontecer... O que a pessoa faz? Resolve não ter mais gênio irritadiço? Não vale nada. Se é só isso, não vale nada. Tem que resolver ser de um gênio angélico! Porque o nosso defeito capital, só o vencemos praticando uma virtude eminente. Se não for assim, não adianta nada.

São Francisco de Sales era um santo famoso por sua doçura. Quando morreu, como era um grande personagem – Arcebispo-Príncipe de Genebra – naquele tempo se fazia isso, século XVII, resolveram autopsiá-lo. Abriram-no e encontraram seu fígado como se fosse de pedra: todo endurecido. Por quê? Porque tinha um gênio péssimo e vivia dominando-se de tal maneira, que era considerado o santo da doçura.

É assim: tem dificuldades em ter um bom gênio, procure ter um gênio angélico. Você é preguiçoso? Tem medo de lutar? Procure ser um herói e um dragão ao serviço de Nossa Senhora! Você tem preguiça de estudar, seja o primeiro a estudar no seu êremo e a conversar sobre livros etc. Pegue o seu defeito, o mais difícil de vencer, porque não o venceremos se formos apenas corretos na luta contra ele. Devemos ser exímios, como que santos naquele ponto.

Temos pouca vontade de reconhecer nossos defeitos, examinemos nossos atos implacavelmente. Nunca pensemos em atenuantes, porque se não os quisermos reconhecer, só os reconheceremos se formos implacáveis e se os pegarmos um por um, analisarmo-los com lupa e depois dizer: “mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”. Se formos vaidosos, nunca pensemos em nossas qualidades. Nunca pensemos em comparar-nos com ninguém. Fujamos dessas duas coisas como da peste, e procuremos apenas, apenas e apenas passar desapercebidos; ou, se não passarmos, não pensar nos aplausos que nos dão. Vindo os aplausos, devemos ser como um peixe no seu aquário.

* O aquário de nossa humildade

Foi uma coisa que sempre me impressionou, nos aquários que tenho visto, é que está ali aquela caixa de vidro e o peixe. Ele chega-se perto do vidro da caixa e abre aquela boca... Pensa-se que o peixe está vendo. Bate-se com o dedo no vidro em frente à boca dele, para ver se ele foge, ele continua hum, hum, hum [abrindo e fechando a boca]... Quando quer, vai-se embora, nadando como entende, para o lugar que deseja. Assim nós devemos ser com os aplausos.

No aquário de nossa humildade, pode ser que nos aplaudam, devemos não sentir o menor frêmito, a menor alegria, o menor [suspiro], mas, pelo contrário, tomar como se aplaudissem um outro. Por quê? Porque se gostamos de aplauso, devemos proceder assim. Isto é heroísmo!

* Santo Antônio Maria Claret: um santo modelo de humildade heróica

Havia santos, no século passado, como Santo Antônio Maria Claret, fundador desses padres do Coração de Maria. Ele era um grande orador popular. Era Arcebispo, Patriarca das Índias e grande orador popular. Espanhol, catalão lá de Barcelona ou daquela zona. Baixinho... Orador de voz possante. O povo se impressionava muito com seus sermões. Terminada uma série de dias em que fazia sermões numa cidade, ia para uma outra próxima. Muitas vezes ia a pé. Levado pelo entusiasmo que sua personalidade causava, o povo ia atrás dele até meio caminho da cidade vizinha. E atraído pela sua fama, o povo da cidade vizinha já vinha ao encontro dele. De maneira que, quando era chegada a vez de se encontrarem, iam os dois povos cantando, um de encontro ao outro... E Santo Antônio Maria Claret com os elogios daqueles de quem ele se despedia e com os elogios daqueles em cujo convívio ele entrava.

As pessoas tinham por ele uma justificada admiração, mas uma tão profunda devoção que tinham gosto – sem ele perceber e por detrás – de cortar pedaços da sua batina, cortar um botão, uma coisa ou outra... Depois não o deixavam rezar, pois queriam sempre falar com ele...

Então, os que o acompanhavam, arranjaram assim um quadro de madeira que não dava para os que estavam do lado de fora do quadrado poderem pegar nele. Andando no centro do quadrado, podia ir sossegado, aproveitando para rezar tranquilo, que o povo não o atingia, tal era a admiração. Deus Nosso Senhor, vendo a humildade dele diante dessa admiração, praticava maravilhas.

Numa população a que foi, disse ele o seguinte: "Vós estais ouvindo o meu sermão com negligência e indulgência; mas também sereis castigados, porque a cúpula desta igreja desabará sobre vós!" Buummm! A cúpula caiu... Morreram pessoas... Compreendem a admiração que isso causa... Em nenhum momento, ele cedia a esse entusiasmo popular.

A dada altura, ele conheceu a rainha, ou, por outra, esta conheceu-o e quis tê-lo como confessor. Era uma rainha liberal e fassura: a rainha Isabel II da Espanha. Levava muito má vida. Não era mulher de nenhum rei, pois tinha herdado o trono; seu marido era príncipe consorte, mais ou menos como o da rainha de Inglaterra, hoje. Nomeou-o confessor e obteve para ele da Santa Sé o título – ele já era Arcebispo – de Patriarca das Índias Orientais, um título pomposo, que dava direito a uma porção de honrarias... Assim, ele começou a frequentar a corte. Então, mudou o cenário. Vivia com trajes episcopais muito elevados, muito nobres, jóias, roquetes de renda, anel pastoral magnífico, num ambiente de grande luxo.

Como diretor espiritual combinou com a rainha certas coisas. Não sabemos quais eram... A rainha não as seguiu. A primeira coisa que ele fez, foi pedir a demissão, dizendo: "Peço a demissão a Vossa Majestade, porque para ser confessor de quem não toma a sério o Sacramento da Confissão não conte comigo!" E saiu. Passou a levar uma vida inteiramente recolhida, creio que num convento ou qualquer coisa assim. Daí a algum tempo depois, a rainha mandou-o chamar de novo. Afinal, a rainha acabou aceitando um pouco do grande bem que ele lhe fazia.

Vejam o desapego dele! Passa de ser um pequeno pregador popular para confessor da rainha, Arcebispo Patriarca das Índias. Atinge o ápice de sua carreira. A partir do momento em que não podia cumprir seu dever, nada daquilo significava nada para ele: "Até logo, vou-me embora".

É heróico! Agora, por que é heróico? Porque a natureza humana gostaria de fazer o contrário: bajular a rainha; obter dinheiro dela, mais cargos e posições... A confissão, tocar mais ou menos. Ia para o Inferno, e não seria o grande santo que é hoje. Mas os homens tendem a ir para o Inferno, não há nada de extraordinário. Ele cumpriu o dever heroicamente, até o fim! Assim que se apresentou a necessidade de uma demissão, pediu-a logo, inteiramente: "Não quero mais! Até logo!"

* Entreguei a minha vida para estar amarrado ao mesmo tronco onde foi flagelado Nosso Senhor Jesus Cristo.

Então vamos aplicar esses casos ao de um membro da TFP. Ele vai ao colégio. Lá ele poder ser herói? Pode ser herói na faculdade? Pode ser herói numa festa de aniversário, em família? Em todos os lugares ele poder ser herói! Mas, no que consiste ser herói?

Mostrar por inteiro o que é e o que pensa. De maneira que havendo uma conversa tenha a coragem de dizer: "Eu não penso assim, porque a Igreja Católica pensa de tal modo, assim, assim e assim. E como eu sou católico e sigo o pensamento da Igreja, eu penso como Ela. Olhe aqui: é isto!"

Haverá uma porção de gente que vai estranhar, que falará, etc. Devemos pensar: entreguei a minha vida para estar amarrado ao mesmo tronco onde foi flagelado Nosso Senhor Jesus Cristo. Vão-me achar bobo, vão dizer que sou um cretino. Vou ter em vista Nosso Senhor Jesus Cristo coroado de espinhos, com o manto de doido que Lhe puseram e com a cana de imbecil que Lhe puseram. Para mostrar que era um tolo que Se dizia Rei: coroaram-No de espinhos e atiraram-Lhe um manto de irrisão, de gargalhada por cima d'Ele. Para completar o traje real, deram-lhe como cetro uma taquara. Assim, todo flagelado, Ele sentou-se num tronco enquanto não vieram pegá-Lo para O levar para a Cruz. Mas Ele fez o que tinha que fazer!

* Nosso Senhor desafiou os de seu tempo

Na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, os senhores encontram o heroísmo a cada momento e praticado até o fim. Ele estava em oposição àquele povo – povo prevaricador – do qual sairia o punhado de judeus que constituíram o primeiro núcleo da Igreja. São pessoas gloriosas para todos os tempos e são judeus. Mas o resto é um povo amaldiçoado! Ele – pela inteligência Divina – conheceu perfeitamente que todo aquele pessoal era contra Ele, mas continuou Seu caminho ensinando, pregando e fazendo milagres atrás de milagres. Percebia os ódios que se levantavam contra Ele.

Ainda mais, pois a atitude d'Ele, por assim dizer, desafiou aquela gente. Por exemplo, o trecho famoso do Evangelho em que Ele falou da Eucaristia, dizendo: "Se não comerdes a Minha Carne e beberdes o Meu Sangue, não tereis parte Comigo na vida eterna". As pessoas que lá estavam não entenderam. Imaginem os senhores ouvir dizer de um homem: "Se não comerdes a minha carne e beber o meu sangue, não ireis ter parte comigo na vida eterna"; o que entenderiam disso? Mas Ele tinha feito tais milagres e mostrado tais virtudes, que era impossível que não percebessem que Ele era o Homem-Deus. E que no Homem-Deus haveria um modo misterioso de se realizar. Deveriam aceitar isso como verdade, porque Ele era o Homem-Deus. Ele desafiou, portanto, aquela gente. Vários retiraram-se. O grupinho d'Ele diminuiu. Qual foi a resposta d'Ele a isso?

Voltou-se para os que Lhe tinham ficado fiéis e perguntou-lhes: "E, vós, também não ides?" Quer dizer, desafiou-os! E São Pedro disse aquelas lindas palavras: "Para onde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavras de vida eterna?" Quer dizer, aquele grupinho [por sua vez] fez o desafio: foram os Apóstolos depois.

* Antes de tudo rezar...!

Meus caros, parece-me que a coisa foi dita e repisada. Agora, é preciso saber como fazer concretamente. Para isso, é preciso compreender-se, antes de tudo, que quando se quer perseverar, não se quer passar na TFP apenas um ano, um mês, uma semana e um dia, mas quer-se levar a vida inteira dentro da TFP, há que se ser sério nesse propósito e procurar realizar isso de fato. Não são palavras soltas no ar, mas realizar de fato. Sentimos falta de coragem para isso? Deve pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Nossa Senhora, que nos dê forças. Ninguém, sem uma ajuda da graça, tem força para isso.

Então, temos que pedir essa ajuda, e Nossa Senhora nos obterá do Divino Filho dela a graça, quer dizer, uma participação criada na vida incriada de Deus. É com esta força que teremos coragem para tudo, que teremos resistência para tudo. E as coisas que julgarmos que serão as mais impossíveis para nós, se rezarmos, rezarmos e rezarmos, acabaremos praticando-as.

* E rezar como Nosso Senhor no Horto

Os senhores têm um exemplo disso no Horto das Oliveiras. Nosso Senhor via a Paixão que se aproximava. E diante de tudo o que Ele ia sofrer, prevendo todos os pecados que se cometeriam contra Ele até o fim mundo, Ele começou a “tedere et pavere - a sentir tédio e pavor”. “Et mæstus esse - e a ter tristeza”.

A pressão de tudo isso foi de tal maneira grande que Ele chegou a suar Sangue. Os médicos estudam isso hoje e todos sabem que uma tensão muito grande pode arrebentar as pontas dos vasos capilares, produzindo suor de sangue. É uma coisa ultra-conhecida entre médicos. Ele suou Sangue. Aí sentiu uma desproporção entre as forças que tinha e a imensidade do que Ele devia sofrer. E fez aquela oração sublime: "Meu Pai, se é possível, afastai de Mim este cálice", quer dizer, esta taça de dor para beber. "Porém, se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha".

Não conheço quadro de pintor que tenha ousado pintar essa cena. Desceu um Anjo até ele. Que Anjo? Terá sido provavelmente São Gabriel que anunciou a Nossa Senhora o nascimento d'Ele? Ou terá sido São Miguel que derrotou o demônio – e que estava ali para dar ao Grande Vencedor contra o demônio, que era Nosso Senhor, as forças necessárias? Também não sei. O fato é que um Anjo desceu e deu-Lhe um cálice com uma bebida misteriosa que Lhe deu forças para todo o resto. Ele bebeu e a força se restabeleceu dentro d'Ele, e recompôs dentro dele uma posição de alma pela qual, quando chegaram os algozes, Ele caminhou até eles e se ofereceu para a prisão. Depois, o resto os senhores conhecem... até o alto da Cruz.

* “Oportet orare e numquam deficere - É necessário rezar e não desanimar nunca!”

Então, devemos começar por rezar. Se não rezarem, não obterão nada. Rezem muito! E ainda que aconteça a desgraça de algum dos senhores cair em pecado, reze. Reze, porque Nossa Senhora é o refúgio dos pecadores. Quem é pecador, encontra junto a Ela a solução para o seu caso, apesar de ser pecador, porque Ela é Mãe e Protetora dos Pecadores. Rezem-Lhe portanto. Nunca duvidem de que Ela os auxiliará, porque ajudará em qualquer caso e sempre. Não parem de rezar. Nosso Senhor tem esta expressão: "Oportet orare e numquam deficere!" É necessário rezar e não desanimar nunca! É isso que se deve fazer.

Rezem, rezem; rezem, rezem... Não deixem de rezar nas suas dificuldades, nos seus apuros e nas suas vergonhas. A graça virá e os senhores terão coragem. Tendo coragem, comecem por fazer uma análise perfeita dos seus defeitos. É preciso pedir a Nossa Senhora que faça ver a cada um os seus defeitos, implacavelmente. Não procurem as atenuantes. Procurem só o defeito. Não pensem: eu fiz tal coisa, mas tinha tal atenuante... Deixem de lado a atenuante. Procurem o defeito. Se não encontrar seu defeito, você não irá para o Céu.

Depois de conhecido bem o defeito, dizer o seguinte: o que eu ouvi dizer o Doutor Plínio e que é recomendação da Igreja Católica é de eu fazer o oposto. Naquela matéria em que eu tenho o defeito, eu preciso ser exímio e praticar de modo magnífico a virtude oposta. Peçam forças e comecem de um só jato. Aí os senhores serão heróis. Eu garanto aos senhores que o menor dos enjolrinhas tem ocasião de ser herói como mais antigo dos veteranos, é questão de seguir o conselho que eu dei. Não é conselho meu, mas de todos os moralistas bons... Esses progressistas não sei o que aconselham; aconselham qualquer coisa que seja errada. A Moral tradicional da Igreja é esta. E é isso que os senhores devem fazer.

* Especial confiança em Nossa Senhora

Antes de encerrar, eu permito-me de insistir num ponto. Pela minha experiência pessoal, eu posso dizer que se não tivesse rezado muito e rezado especialmente a Nossa Senhora, e com especial confiança n'Ela, a esta hora não estaria aqui. Foi pelas forças que Ela meu deu que toquei a minha vida de um modo conforme a vontade d'Ela. Acho que os senhores se quiserem poder dizer de si mesmos, quando chegarem à minha idade, o que estou dizendo, devem estar preparados para acrescentar:

Não fui eu que venci, mas Deus que venceu em mim. Venceu em mim, não por minha oração, mas porque eu rezei por meio de Nossa Senhora. Por meio de Nossa Senhora eu consigo tudo. É o testemunho de uma vida inteira.

Com isso, meus caros, está terminada a nossa reunião...

* Fatinho: heroísmo na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo

[Fatinho! Fatinho! Fatinho!...]

No tempo em que estudei, lá por entre 1925 e 1930, frequentei a Faculdade de Direito de São Paulo. Ela era muito organizada e havia uma pressão contra os estudantes católicos, uma coisa medonha. E, eu católico, percebia e tratava-os [aos que faziam pressão] com distância. Contudo, viam perfeitamente que eu guardava a castidade, porque São Paulo era uma cidade pequena e os lugares perdição eram relativamente pouco numerosos. Era fácil saber-se se uma pessoa os frequentava ou não. Graças a Deus nunca me viram num lugares desses. Então, aonde é que está?

* Modo de ser que era um primeiro ataque contra os impuros

Eu resolvi o seguinte: vou entrar para a Faculdade e estou percebendo que vou sofrer muita perseguição e que devo lutar. Se eu tenho lutar, não vou esperar que me ataquem, vou adotar um modo de ser que é um primeiro ataque meu a eles. Eu, começo eu, por enfrentar! E, por causa disso, vou tomar uma fisionomia séria, polida e educada – não vou ser um ferrabrás – tratar bem as pessoas, de um modo polido e educado, de uma pessoa inteiramente segura de si, e que em qualquer circunstância enfrenta qualquer pessoa, de maneira que é melhor não brincar comigo.

Não sei se os senhores sabem o que é trote de calouro... Acho que devem saber... Havia trotes medonhos na Faculdade de Direito. Eu percebia que se fosse para o trote, especialmente me perseguiriam pelo fato de ser católico e de guardar a castidade. Eu ficava numa alternativa: ou ia para o trote, o que seria um horror, podiam até levar me para um casa de perdição, à força, e eu teria que tirar [desforço], na rua, em público, na Praça da República ou em qualquer outro lugar, durante o dia, o que seria uma coisa perigosa; ou não iria até acabar o trote, e só a partir daí começaria a frequentar a Faculdade. Se não fosse, havia o costume de que a pessoa que não foi ao trote, a primeira vez que pusesse o pé na Faculdade, passavam um trote muito pior do que aos outros.

* Fazer-me trote? Seria um esparrame monumental!

Eu entrei na Faculdade com cara normal, segura, mas de poucos amigos. Fui atravessando a pé uma espécie de claustro interno que lá há, rumo à minha sala de aula que era no fundo do mesmo. Andando a pé, vi que ninguém me conhecia e que a coisa passava... Quando um idiota de um amigo meu... – amigo... Os senhores sabem que amigo... – começou assim a fazer [com a mão batendo na boca]: "Calouro! Calouro!..." para chamar a atenção dos outros e darem todos um trote em mim.

Eu reconheci a voz dele. Nem olhei para trás; não apressei meu passo e continuei a andar com toda a calma, mas com uma cara e um jeito de dar a entender que se começassem um trote, sairia um esparrame monumental!

Entrei na sala de aula. Aqui pude respirar um pouco, enquanto o professor dizia umas quaisquer asneiras na cátedra, nas quais não prestei nenhuma atenção, pois estava fixo noutras idéias... Pude, assim, respirar um pouquinho.

De repente há um sinal, dado um por sino, de que se acabou a aula. Eu tinha que, agora, refazer o mesmo trajeto. Era possível que estivessem à minha espera, para me pegar... Eu não saí nem muito na frente nem muito atrás. Pus-me num lugar aonde ia no meio dos outros. Saímos, e eu sem conversar com ninguém. Devia haver gente ali que estava apostada a dar me um trote. Mas, agi de um certo modo – e Nossa Senhora teve pena de mim – que também não saiu nada. Cheguei até outra ponta...

* AUC: a primeira associação católica na Faculdade de Direito

Quando apanhei mais um pouco do hábito de frequentar a Faculdade, comecei a cutucar e a fazer polêmica. Perto da Faculdade havia um café, aonde os alunos iam, terminadas as aulas, conversar. Lá também eu ia, para criar caso. Começava a falar contra o comunismo. Havia um colega de turma e de ano que era comunista, chamado, não sei por que, era o apelido que lhe davam, de Paxá. Não sei que fim levou ele... se morreu... Entretanto, deve ter entrado para o Partido Comunista. Quando ele via que eu falava mal do comunismo, punha-se em pé perto de mim e começava a discutir. Eu discutia com ele a valer, dizendo-me católico e atacando-o em nome da doutrina católica, chamando-o de ateu. Coisas inteiramente inusitadas na Faculdade de Direito.

Como eles [os meus colegas] viam que eu entrava de rijo, tornou-se um hábito, era costume de muita gente ir ao café, para me ver discutir com o Paxá.

Nos anos anteriores ao meu, eu estava no terceiro – portanto no primeiro e segundo anos – tinham entrado uns dois ou três congregados marianos que eu conhecia. Eram mais: quatro ou cinco... Numa ocasião, chamei-os, mas não na Faculdade, numa Congregação, e disse-lhes:

"Somos cinco e vivemos isolados uns dos outros". Eu não queria dizer, mas alguns não usavam distintivo, porque não tinham coragem. Eu usava. "Vamos constituir um grupo chamado "Ação Universitária Católica" – AUC. Vamos pedir licença à Cúria para funcionar e constituiremos um núcleo de recrutamento de católicos, dentro da Faculdade de Direito. Vocês também usarão distintivo."

Combinamos o sistema de recrutamento e começou-se a fazê-lo... Pouquíssimos vieram. Alguns só... Quando vi que o grupo tinha crescido um pouco, propus: "Vamos publicar um jornalzinho interno na Faculdade chamado "O AUC". Jornal católico, dizendo as coisas no duro!" Alguns deram um suspiro. Eu disse: "Ah, não! É isso! E eu vou ficar na porta principal, sozinho. Eu distribuirei na porta principal. Você em tal porta; você em tal outra; e você em tal outra... A Faculdade tinha várias portas. Aceitam? Está bom..."

No dia marcado, quando se tinha acabado de imprimir o jornal, eu fui para a Faculdade preocupado. Estavam lá eles com os jornais que tinham ido pegar na oficina – um maço grande –; eu peguei deles uma boa parte dos jornais e coloquei-me à entrada da Faculdade. Aonde chegavam os alunos de automóvel e desciam, levados pelas suas famílias. Alguns eram rapazes ricos e tinham automóvel. O chauffeur levava-os. Desciam todos os importantões. Era a entrada dos importantes. Pus-me lá para enfrentá-los!

* A surpresa

Quando desciam, eu dizia: "O jornal dos universitários católicos. O jornal dos universitários católicos". Eu estava preparado para tudo, até mesmo para que fizessem uma caçoada de mim, uma roda, que me arrancassem os jornais, que os queimassem no centro do pátio... Com surpresa para mim, todo o mundo aceitava o jornal e não o jogava no chão. Alguns agradeciam. Uns até paravam e falavam um pouquinho. A coisa foi, no geral, bem recebida. Assim foi lançada a primeira organização, na Faculdade de Direito, de católicos praticantes. Estava dado um passo...


Bookmark and Share