Plinio Corrêa de Oliveira

 

Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?

 

Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981

Secção E – Dramatização do problema fundiário para justificar a Reforma Agrária socialista, confiscatória e igualitária

TEXTO DO IPT

Migrações e violência no campo

25 . Há no país, milhões de migrantes, muitos dos quais obrigados a sair do seu lugar de origem, ao longo dos anos, devido principalmente à concentração da propriedade da terra, à extensão das pastagens e à transformação nas relações de trabalho na lavoura. Sem contar os milhares de migrantes que, como extensão da migração interna, têm se dirigido aos países vizinhos.

 

COMENTÁRIO

Sob vários pontos de vista, a secção que se inicia com o presente tópico constitui o ponto nevrálgico de todo o documento. Pois pinta o quadro do problema fundiário rural no Brasil, em função do qual o IPT delineará e proporá a Reforma Agrária.

De tal maneira enxameiam nos tópicos 25 a 31 imprecisões a assinalar e objeções a fazer, que os comentários forçosamente se multiplicaram. Eles deixarão claro o balofo do texto, inflado e dramatizado de maneira a impressionar o leitor ingênuo... sem contudo nada dizer de preciso e de verdadeiramente concludente.

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Milhões ...” – Quantos milhões? Dois? Dez? Cinqüenta? A imprecisão desconcerta, tanto mais quanto, no tópico 14, eram apenas “milhares”. Dir-se-ia que, na estranha matemática do IPT, três zeros não fazem diferença....

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... de migrantes”. – Qual o conceito exato de “migrantes” na terminologia do IPT? Inclui todos os brasileiros de pequena, média e grande burguesia que se deslocam da sua cidade natal, a bem de suas atividades empresariais ou intelectuais? Inclui também os trabalhadores manuais que vivem em condições normais e se movem em direção ao hinterland inabitado e inculto, para as selvas, “povoando”, segundo o preceito do Gênesis (1, 28) a terra brasileira? Neste caso, ser migrante não é cumprir o mandamento divino? Ademais, o grande número de migrantes para o campo deve ser visto como a marcha miserável da pobreza, ou como a caminhada, árdua mas meritória, de um povo que realiza seu destino providencial ocupando e transformando em fonte de riqueza o território-continente que Deus e a História lhe puseram nas mãos? [1].

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... muitos dos quais”. – Precisamente quantos? Ou que porcentagem? Pergunta-chave para obter uma resposta que permita aquilatar até que ponto a migração resulta de miséria e coação. Não há no IPT elementos que permitam responder a essa pergunta.

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... obrigados a sair do seu lugar de origem”. – Quais as formas de coação empregadas? Em que proporção é empregada cada uma? Essa coação se exerce por igual em todas as regiões do território brasileiro? Ou existe só em algumas, e não em outras? Em que regiões existe? Desde quando? Com que índice de freqüência? Sem resposta a essas perguntas, como avaliar exatamente a gravidade do mal apontado pelo IPT, bem como a natureza e a amplitude das providências aptas a resolvê-lo?

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... ao longo dos anos”. – Normalmente se sai do lugar de origem uma vez só. O que significam aqui estas palavras? Ao longo de toda a existência terrena dos migrantes vão eles perambulando sem jamais se fixarem? Ou seria que, ao longo dos anos, novas levas de migrantes vão deixando seus lugares de origem? Neste caso, por efeito de coação, ou de expansão demográfica? Seria necessário que o IPT esclarecesse tudo isto. Ele, porém, se cinge a generalidades enunciadas de modo sumário e afogueado.

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... devido principalmente”. – O texto se propõe, portanto, mencionar os principais fatores de migração. Há fatores secundários? Todos estes reunidos, que importância têm em comparação com os fatores “principais”? Por sua vez, cada um dos fatores principais, que quota de importância tem na produção do fenômeno migratório? Desde quando cada um desses fatores atua no sentido apontado? Mais uma vez, silêncio do IPT.

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devido... à concentração da propriedade da terra”. – De que maneira, ou maneiras, essa concentração “obriga” à migração? Ainda cabe aqui a pergunta.

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... à extensão das pastagens”. – O IPT se refere ao fato como se fosse substancialmente negativo e injusto. Já se viu o arbitrário desse posicionamento (cfr. Comentário ao no. 15).

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... e à transformação das relações de trabalho na lavoura”. – Que transformações? Com que efeitos concretos? Com que índice de freqüência? Em que regiões do País? Silêncio...

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Milhares de migrantes... têm se dirigido aos países vizinhos”. – Quantos milhares? Esse êxodo de braços para o Exterior constitui necessariamente uma catástrofe? Ou é um fenômeno normal, decorrente do preceito “enchei toda a terra” (Gen. 1, 28)?

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Cabe aqui lembrar alguns aspectos do problema fundiário no Brasil: eles mostram, já à primeira vista, e em princípio, que esse problema não pode nem deve ser resolvido pela partilha compulsória da grande e da média propriedade, como pretende o IPT (cfr. Comentário ao no. 89).

Nosso País, de 8,5 milhões de quilômetros quadrados (dos quais cerca de 5 milhões, incultos e aproveitáveis, pertencem ao Poder público), conta com uma população de cerca de 120 milhões de habitantes. O problema fundiário assume, portanto, no Brasil, características muito diversas das que ocorrem em países densamente povoados, como os da Europa, por exemplo.

Há décadas cessaram no Brasil os grandes fluxos migratórios. A ocupação das imensas extensões desocupadas e incultas se vem fazendo desde então pela expansão demográfica da própria população. Tomando em consideração que a quase totalidade do território nacional é aproveitável para a agricultura ou a pecuária, os trabalhadores rurais têm diante de si possibilidades de progresso quase ilimitadas.

Cumprindo o preceito do Gênesis, “povoai toda a terra”, o Brasil é pois, e caracteristicamente, um país de migração. Como ocorre em todos os lugares desde o começo do mundo, essa migração é por vezes forçada pela saturação demográfica de certas regiões. Outras vezes ela resulta de que, mesmo em zonas não densamente povoadas, pessoas mais empreendedoras preferem deixar seu habitat normal, com as possibilidades pequenas ou médias que este oferece, e lançar-se à aventura árdua, mas tantas vezes lucrativa, do desbravamento de grandes glebas desocupadas.

A partir de 1930, o fenômeno migratório interno se acentuou ainda mais em razão da industrialização do País. A política aduaneira forçou a alta dos preços dos produtos importados, e favoreceu o surto da indústria nacional. Este último se incrementou ainda mais com a II Guerra Mundial. Tudo isto conduziu ao crescimento vertiginoso dos grandes centros urbanos. A indústria apelou então para os braços dos trabalhadores rurais, que atraía por meio de salários muito maiores que os pagos pelos proprietários rurais. Daí nascer no País outra corrente migratória, dirigida não mais para o hinterland, mas já agora aos grandes centros.

A miragem da vida fascinante e trepidante da grande cidade reforçou a migração desejada pela indústria.

Tal é a pujança do País que, em certo modo, ambos esses surtos migratórios se desenvolveram pari passu. E a classe rural não cessou de desbravar e de se expandir, ao mesmo tempo que várias cidades grandes ganhavam proporções de vertiginosas babéis, e cidades apenas médias se transformavam em grandes.

Nessa perspectiva, as migrações internas no Brasil, se vistas globalmente, e sem considerar situações peculiares (naturalmente surgidas dos fatos, ou criadas por interferências infelizes) em uma ou outra região do imenso País [2], não apresentam o caráter dilacerante verificado quiçá em outros lugares. Em geral, o migrante não tem a psicologia de quem foge revoltado, sob a ameaça de uma pobreza crescente, mas de quem busca, esperançosa e empreendedoramente, em outras regiões da própria pátria, oportunidades melhores [3]. Contra esta assertiva não serve de argumento o fato de que toda migração traz consigo separações, tristezas, fadigas, riscos e danos. Este é o lado penoso do cumprimento do preceito “ocupai toda a terra”. Qual, aliás, a atividade humana que não está exposta a essas vicissitudes?

O fundo de quadro insinuado pelo IPT é bem outro. Nos “milhões de migrantes muitos dos quais obrigados a sair do seu lugar de origem”, ele só vê infelizes que saem escorraçados por vizinhos vorazes e onipotentes, quando a realidade é, o mais das vezes, bem diversa. A divisão dos patrimônios em virtude da igual partilha das heranças entre os filhos do proprietário (Código Civil, art. 1604), pode reduzir certas propriedades agrícolas ao simples módulo rural em vigor na região. De modo que, conforme o caso, os respectivos donos preferem colocar seu trabalho em mercados mais rendosos. E conservam inculta a pequena propriedade herdada, tão-só como garantia de sobrevivência para o caso de um insucesso.

Nada disso o IPT menciona. Pois, como se vê, e mais adiante melhor se verá, ele seleciona na realidade global apenas uns tantos dados, e os despe das circunstâncias que constituem seu contexto natural e explicativo. Isto feito, o documento focaliza tais fatos de maneira que se configura uma situação irreal, toda ela preparada para a luta de classes.

TEXTO DO IPT

26 . Uma grande parte dos lavradores migrou para as grandes cidades à procura de uma oportunidade de trabalho, indo engrossar a massa marginalizada que vive em condições subumanas nas favelas, invasões e alagados, em loteamentos clandestinos, cortiços e nas senzalas modernas dos canteiros de obras da construção civil. O desenraizamento do povo gera insegurança pelo rompimento dos vínculos sociais e perda dos pontos de referência culturais, sociais e religiosos, levando à dispersão e à perda de identidade.

COMENTÁRIO

Uma grande parte dos lavradores migrou para as grandes cidades...” – Quantos? Em que porcentagem? Desde quando? A migração para a grande cidade não tem sido condição essencial para a industrialização do País? Por que o IPT a considera, então, um fato inteiramente negativo e dramático? É certo que a formação das megalópolis industriais tem sido nociva para os migrantes vindos do campo, como aliás para todas as classes da população. Mas essa nocividade decorre muito mais da concentração exagerada das industrias em grandes cidades, do que da migração propriamente dita. Pois as industrias poderiam ter-se estabelecido, em boa parte, em cidades médias. Mas este já é um problema autônomo, e inteiramente distinto dos problemas fundiários do campo.

Ademais, o IPT parece supor que a principal causa das exageradas concentrações urbanas seja econômica. Ora, no mesmo sentido atuam fatores psicológicos de força impressionante, que a supressão das grandes propriedades em nada diminuirá. O rádio e a televisão, que chegam hoje aos últimos rincões do País, deslumbram o trabalhador rural (como, aliás, também o proprietário) com a miragem fascinante da vida das grandes cidades. Em contraste com esta, a vida do campo a muitos parece rotineira, monótona, quase se diria subumana. Daí, em grande parte, o êxodo.

Tudo isso, o IPT parece ignorá-lo. Simplista nas suas visões fundamentalmente dirigista em seus métodos, o IPT vê o problema a seu modo, e em conseqüência advoga para ele uma solução, abstendo-se de aduzir provas de que esse problema é exatamente como ele o apresenta [4].

Uma das soluções, talvez a mais óbvia e a mais autêntica, seria o encaminhamento dos braços rurais excedentes para as imensidades inexploradas do território nacional. Porém, propenso a não ver em toda a realidade atual senão problemas que se amontoam sobre problemas, o IPT discorre sobre a ocupação das imensidões disponíveis do território nacional para enumerar não as vantagens daí decorrentes, mas tão-só os problemas que o povoamento dessas vastidões acarreta (cfr. IPT no. 27). Como se algo houvesse de sério e grande neste mundo que não acarretasse duros e graves problemas.

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... indo engrossar a massa marginalizada”. – Em que proporção os migrantes para as grandes cidades se incorporam aos marginalizados nestas existentes? Em que proporção – por sua vez – tais marginalizados permanecem estagnados em sua miséria, ou pelo trabalho próprio se elevam, no plano sócio-econômico?

Em outros termos, a estadia dessas massas migrantes nas favelas é sempre definitiva, ou constitui em muitos casos mero estágio de abordagem da grande cidade? As favelas habitualmente são fixas. Ao correr dos anos elas lá estão. Mas em que medida são fixas as populações que nelas habitam? [5].

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... que vive em condições subumanas nas favelas”. – Nas favelas e locais congêneres tudo é miséria? Ou há afloramentos de largueza e até de conforto em vários locais destes? O que significa precisamente a fixação em uma favela, como índice de miséria?

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O desenraizamento do povo gera insegurança” etc. – Por certo, a migração mal feita pode gerar essas conseqüências. Contudo, estas não são frutos necessários dela. Por exemplo, o “desenraizamento” de um homem ou de uma família, como de uma planta, tanto pode acarretar sua destruição quanto sua frutificação mais abundante, decorrente da implantação em solo mais propício. Em que proporções se dá uma e outra coisa no fenômeno migratório? O remédio para esses males consiste em entupir o escoamento demográfico das zonas hiper-povoadas, ou em organizar bem esses escoamentos? Quanto poderiam fazer, neste sentido, certos eclesiásticos que empregam o melhor de seu tempo em provocar a luta de classes?

TEXTO DO IPT

27 . Outra parte se dirige às regiões agrícolas pioneiras à procura de terras. Entretanto, com freqüência, sua tentativa de fixar-se à terra choca-se contra uma série de barreiras: dificuldade para obter o título definitivo da terra, no caso de compra; a falta de apoio ou o próprio fracasso das companhias colonizadoras; nova expulsão da terra, ante a chegada de novos grileiros ou de reais ou pretensos proprietários.

COMENTÁRIO

Com freqüência, sua tentativa de fixar-se à terra choca-se contra uma série de barreiras”. – Com que freqüência? No conjunto do movimento migratório brasileiro, qual a quota dos efeitos danosos decorrentes dos obstáculos aqui apontados?

Ademais, cumpre ponderar que, ordinariamente, vários desses efeitos, quando existem, resultam da incompetência, da corrupção ou do burocratismo. A cessação desses efeitos deve ser alcançada normalmente pela eliminação dos agentes que os causam. É admissível que a mera partilha das terras trará como conseqüência a supressão da incompetência, da corrupção e da burocracia? Parece, pelo contrário, que, incumbindo-se o Estado – burocrático por essência – de remodelar toda a estrutura agrária do País, tais efeitos possam encontrar campo imensamente mais livre para sua ação daninha.

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O próprio fracasso das companhias colonizadoras” só pode ser remediado pela reforma fundiária? E por que não por uma bem orientada política de fiscalização e incentivo a essas companhias?

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A “expulsão da terra” ante a chegada dos proprietários que reivindicam seus direitos só pode ser remediada pela medida violenta da extinção dos direitos desses mesmos proprietários?

Por que o IPT não pede que o Poder público encaminhe as correntes migratórias para as imensas extensões incultas de que ele é senhor?

Contra “a chegada de novos grileiros”, o remédio normal é a proteção policial, e não a divisão de terras.

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Como se vê, o IPT se limita a constatar que uma parte dos lavradores “se dirige às regiões agrícolas pioneiras”, e a lamentar, logo em seguida, as “barreiras” que se lhe opõem. Na realidade, a mera constatação importa numa subestima do fato. A ocupação do solo não desbravado tem uma importância capital para o País. É isto de toda a evidência. E se provas fossem necessárias, bastaria alegar que o inaproveitamento de extensa área de nosso território preocupa tanto a certas altas esferas, que se chegou a levantar o projeto surpreendente da imigração de dez milhões de estrangeiros para ocupá-las. Nessas condições, e prioritariamente a tudo, deve ser apoiada toda tendência, todo impulso e todo esforço para que o Brasil seja ocupado inteiramente... por brasileiros!

O IPT deveria assim manifestar sua admiração pelo espírito de sacrifício e pela coragem dos modernos desbravadores de nosso sertão, e incitar a que os imitassem tantos outros que parecem preferir a estagnação na pobreza, no anonimato e na rotina das grandes cidades. Pois espírito de sacrifício e coragem são virtudes eminentemente cristãs, e despertá-las na consciência religiosa de nossa gente é incrementar a vida espiritual do País e assim tonificar sua vida temporal [6].

TEXTO DO IPT

28 . Em quase todas as unidades da Federação, sob formas distintas surgem conflitos entre, de um lado, grandes empresas nacionais e multinacionais, grileiros e fazendeiros e, de outro, posseiros e índios. Violências de toda a ordem se cometem contra esses últimos para expulsá-los da terra. Nessas violências, já se comprovou amplamente, estão envolvidos desde jagunços e pistoleiros profissionais até forças policiais, oficias de justiça e até juizes. Não raro observa-se a anomalia gravíssima da composição de forças de jagunços e policiais para executar sentenças de despejo.

COMENTÁRIO

... surgem conflitos”. – O IPT dá a impressão de que tais conflitos brotam espontaneamente em virtude da inconformidade dos titulares de direitos lesados. Não seria difícil provar que a índole tranqüila dos brasileiros é bem diversa do que poderiam imaginar leitores estranhos a nosso País. A tal ponto que a grande dificuldade encontrada pela “esquerda católica”, em seu afã de promover tensões sociais, consiste precisamente em levar esse povo bom e simples à convicção de que padece injustiças. Sem negar que se possa encontrar alguma base para semelhante afirmação, a injustiça não é uma nota preponderante e uniforme em todo o País e sua gravidade varia segundo as épocas e as regiões.

Na terminologia da “esquerda católica”, esse esforço de sensibilização para misérias reais ou fictícias se chama “conscientização”. A “conscientização” é a primeira etapa do processo de descontentamento, de agitações e de reivindicações sociais promovido pelos organismos da “esquerda católica”. O que, tudo, leva a reconhecer o caráter artificial e induzido da totalidade ou da maior parte dessas “tensões sociais”.

Ninguém reage contra o mal do qual não tem consciência. Seria o caso de perguntar aqui até que ponto a “conscientização” da “esquerda católica”, e os pronunciamentos torrenciais de membros do Episcopado, de personalidades e instituições católicas, a favor da Reforma Agrária, contribuem para despertar esses conflitos, em que proporções os agravam etc.

Em Apêndice a este volume, o leitor encontrará a relação – tão completa quanto possível – dos pronunciamentos em favor da Reforma Agrária emanados de fontes episcopais. Tais pronunciamentos procedem de vários pontos do território nacional. O número destes – 190 – bem prova a objetividade do adjetivo “torrencial” há pouco usado.

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Violências de toda ordem se cometem...” – Não basta aqui a mera alusão à diversidade dos modos de ser dessas violências, pois em princípio a violência é um crime, e, hoje mais do que nunca, crimes “de toda ordem se cometem” em todos os países. É indispensável conhecer também o número bem como a curva de ascensão dessas violências. E a esse respeito, ainda, o IPT não dá informações.

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... contra esses últimos [posseiros e índios]”. – Há atos de violência contra os proprietários, da parte dos posseiros e índios? Unilateral como de costume, o IPT não parece interessar-se por mostrar ou detalhar isso.

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Nessas violências ...” – Ou seja, em todas elas (pelo menos se consideradas em seu conjunto), segundo o IPT, se acumpliciam “até forças policiais, oficiais de justiça e até juizes”. A afirmação é tão exagerada, que não merece análise. Convém apenas sublinhar que a repetição, gramaticalmente incorreta, da palavra “até” exprime, de modo significativo, a sobrecarga da ênfase reivindicatória que lateja no IPT.

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A afirmação do IPT dá entretanto margem a comentário de outra índole. As nações desejosas de ordem e estabilidade se mostram ciosas, a justo título, de cercar com uma atmosfera de respeito, em algum sentido quase religioso, o Poder Judiciário. Pois quando este é vilipendiado e envolvido nas polêmicas da vida corrente, decai o respeito que lhes devem ter os povos. E o sentimento da estabilidade se degrada, e por fim desaparece.

Assim, só em virtude de causas transcendentais e com base em provas evidentes, é dado a um indivíduo ou grupo social investir contra esse poder.

Os brasileiros cônscios dessa verdade elementar não podem deixar de sentir desconcerto e apreensão ao ver que um documento como o IPT (ou melhor, um organismo como a CNBB) investe aqui contra o Poder Judiciário, alvejando-o sem qualquer espécie de prova.

Desta maneira, o IPT, queira ou não queira, transborda mais uma vez da esfera espiritual para a temporal. E parece deixar entrever o intuito de prover o País com uma Reforma Judiciária que se some à Reforma Agrária e à Reforma Urbana.

Reforma Judiciária de que índole? A caminhar até os confins do horizonte, o olhar discerniria os clássicos tribunais populares eleitos pela vasa da população agitada, para administrar, não a Justiça, mas a “justiça” revolucionária.

É preferível, entretanto, não olhar tão longe...

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Não raro observa-se a anomalia gravíssima da composição de forças de jagunços e policiais para executar sentenças de despejo”. – A referência não poderia ser mais vaga, se bem que, especialmente no tocante a uma “anomalia gravíssima”, um documento que se respeite a si próprio deva ser esmeradamente preciso.

TEXTO DO IPT

29 . A situação tem-se agravado muito depressa. Tomando como referência a região de Conceição do Araguaia, no sul do Pará, podemos ter uma idéia da velocidade e amplitude da situação de conflito. No começo de 1979, havia 43 conflitos identificados e cadastrados. Seis meses depois, os conflitos já eram 55. No final do ano já eram mais de 80. No Estado do Maranhão, tradicionalmente conhecido como o Estado das terras livres, abertas à entrada de lavradores pobres, foram arrolados, em 1979, 128 conflitos, algumas vezes envolvendo centenas de famílias. Em três casos, pelo menos, o número de famílias envolvidas ultrapassa o milhar, sendo grande a concentração da violência nos vales do Mearim e do Pindaré.

COMENTÁRIO

Tomando como referência a região de Conceição do Araguaia, no sul do Pará”. – Esta “referência” deixa entender que a alusão à situação existente nessa região é suficiente para provar que idêntica situação existe em todo o País. Ora, Conceição do Araguaia se encontra no sul do Estado do Pará, o qual por sua vez, se acha no Extremo-Norte do país... numa região equatorial, úmida e quentíssima (Bacia Amazônica). Admitindo-se, argumentandi gratia, a objetividade do fato, ele seria radicalmente insuficiente para justificar a Reforma Agrária em todo um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

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No começo de 1979, havia 43 conflitos identificados e cadastrados. Seis meses depois, os conflitos já eram 55. No final do ano já eram mais de 80”. – Finalmente, dados concretos! Tirados de que fonte, o IPT não o diz. Até que ponto esclarecem eles a situação? Para essa galopada ascensional dos conflitos concorreu exclusivamente o agravamento espontâneo da situação? É impossível não duvidar disto, tomando-se em conta que a antiga Prelazia de Conceição do Araguaia (hoje Diocese) é notoriamente uma daquelas em que a Autoridade eclesiástica mais atuou na promoção do descontentamento rural.

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No Estado do Maranhão...” – Já quanto ao Estado do Maranhão, a pobreza dos dados volta a acentuar-se. A referência a “centenas” e até a um “milhar” de famílias envolvidas em conflitos pode impressionar a quem não conheça o Brasil. Por vezes, grandes áreas de terra permanecem incultas ou semi-incultas, e nelas se vão instalando posseiros, à revelia de proprietários, desatentos ou mesmo desleixados. Se ao cabo de dez ou quinze anos o proprietário ou seus herdeiros resolvem recorrer a meios legais ou ilegais para expulsar esses posseiros ou seus descendentes, com o intuito de cultivar as próprias terras, não é tão difícil que, de um e de outro lado da pendência, estejam envolvidas “centenas de famílias”. No último limite do possível, até um milhar delas. Pelo menos se por “família” se entende o conjunto formado por pai, mãe e filhos (pormenor este, capital, a cujo respeito o IPT também é omisso).

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Ainda como ponto de “referência”, o IPT menciona de modo especial os “vales do Mearim e do Pindaré”, acerca dos quais afirma que é “grande a concentração da violência”. “Grande”: não se poderia ser mais vago, particularmente em se tratando de pontos de “referência”.

TEXTO DO IPT

30 . Estudos recentes mostraram que a cada três dias, em média, os grandes jornais do sudeste publicam uma notícia de conflito de terra. Comprova-se que essas notícias correspondem a menos de 10% dos conflitos cadastrados pelo movimento sindical dos trabalhadores na agricultura. Um levantamento do número de vítimas que sofreram violências físicas, feito através de jornais, indica que mais de 50% delas morrem nesses confrontos.

COMENTÁRIO

Estudos recentes...” – De quem? Publicados onde?

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Os grandes jornais do sudeste publicam ...” – O que prova isso, quando é notório que a maior parte desses jornais têm, infiltrados nos respectivos corpos redatoriais, numerosos esquerdistas e comunistas que dão vazão a todo noticiário próprio a apresentar como instável a ordem sócio-econômica vigente no País? [7] E em que medida cada conflito é noticiado em vários lances por um mesmo jornal? Ou então é publicado um lance de um deles em vários jornais? Tudo isso deixado no escuro, o que prova essa referência ao noticiário dos “grandes jornais do sudeste” quanto ao número absoluto dos conflitos?

A referência especial a “jornais do sudeste” ainda dá motivo a outra consideração. Os conflitos assim noticiados ocorrem na sua maior parte no mesmo Sudeste? Ou no Sul? Ou no Centro? Ou  no Nordeste? Ou, por fim, no Norte? Por que o IPT não foi procurar o noticiário dos conflitos nas próprias zonas em que eles ocorrem?

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... comprova-se”. – Quem comprova? Onde estão publicados esses “cadastros de conflitos”? Qual é esse “movimento sindical dos trabalhadores na agricultura”? Por que motivo o IPT não cita outras fontes, por exemplo estatísticas policiais? Parece que ele considera o “movimento sindical dos trabalhadores na agricultura” como insuspeito, e a Polícia como suspeita. Ainda uma vez, a unilateralidade característica do IPT.

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Um levantamento do número de vítimas ... , feito através de jornais, indica que mais de 50% delas morrem ...” – É lamentável que a CNBB omita de informar o leitor que critério  seguiu para apoiar essa dolorosa porcentagem.

a)    dos jornais”: quais? Só os jornais geralmente tidos por sérios? Ou também a imprensa subversiva e sensacionalista?

b)    por que a CNBB se limitou aos “jornais”? Por que não recorreu às fontes oficiais, como cartórios, registros de óbitos etc.?

Poder-se-ia responder que parte desses óbitos presumivelmente não chega a ser registrada. Mas, de outro lado, poder-se-ia objetar que a parcialidade do noticiário de nossa imprensa, tão freqüentemente infiltrada, também é discutível. A estatística não oferece pois qualquer segurança.

TEXTO DO IPT

31 . Isso mostra a extrema violência da luta pela terra em nosso país, com características de uma guerra de extermínio, em que as baixas mais pesadas estão do lado dos lavradores pobres. Esse processo se acentua na chamada Amazônia Legal, embora ocorra também em outras regiões.

COMENTÁRIO

Ao fim de tanta imprecisão, o IPT exclama, com afogueada e desconcertante ingenuidade: “Isso mostra a extrema violência da luta pela terra em nosso país”. E acrescenta dramaticamente: “ ... com características de uma guerra de extermínio”. Pelo contrário, “nisso” nada foi “mostrado” com o rigor científico que a gravidade das acusações lançadas e da reforma proposta exigem absolutamente.

O IPT pode dar a um leitor inadvertido a impressão de que os conflitos assumem as proporções de uma “guerra de extermínio”. Mas a linguagem empregada neste tópico é agilmente vaga, pois se refere a “características” sem especificar se alude a algumas, a muitas ou a todas as características. E assim nossa certeza não tem como ir além da triste banalidade quotidiana. Por exemplo, mata-se no Brasil de hoje por questões de terra. E onde uma luta ocasiona morte, pode-se dizer que ali está presente uma característica de ... “guerra de extermínio”!

Aliás, no Brasil como em toda a América, de velha data se matou por questões de terra. Outrora houve lutas de morte de proprietários entre si, por questões de limites de terras. Hoje, são mais numerosas as lutas entre proprietários e posseiros. Tudo isto é certamente lamentável. Mas em que medida cria o perigo de uma “guerra de extermínio”, ou se identifica com ela?

Sobretudo, em que medida prova que uma Reforma Agrária fortemente marcada de igualitarismo pode resolver os problemas do campo, e ao mesmo tempo aumentar a produção nas proporções exigidas pela contínua expansão demográfica e pelas necessidades da balança comercial do País?

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O IPT faz notar que “as baixas mais pesadas estão do lado dos lavradores pobres”. Ainda aqui pode acompanhá-lo um coração cristão, pois a desventura do que já é desventurado é própria a atrair mais compaixão do que a do homem feliz. Mas o IPT, absorto na luta de classes, esquece de mencionar uma categoria de baixas que devem despertar especial compaixão e além disso sincero respeito. São os policiais e militares, o mais das vezes dedicados soldados, cabos ou sargentos, mortos nessas emergências, no cumprimento do dever, e ao serviço do bem comum.

Morrer na defesa de um direito próprio é morrer bem. Morrer na defesa do bem comum  é morrer nobremente.

Seja dado registrar, de passagem, a frieza do IPT – sempre unilateral – em relação ao patriotismo desses defensores do bem comum contra as arremetidas do comunismo.

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Esse processo se acentua ...” – Proclamada com estrépito triunfal a conclusão, eis que o IPT aduz extemporaneamente mais uma alegação em favor desta. À maneira de alguém que construiu uma casa, soltou um rojão festivo, mas, analisando depois o edifício, julgou prudente apoiá-lo com mais uma estaca. Só assim se explica a referência, por assim dizer póstuma, do IPT, ao “processo” que “se acentua” (desde quando? Em que proporções?) “na chamada Amazônia Legal” (em toda ela? Em partes dela? Em que partes?) Esta estaca, por sua vez, é apoiada em outra menor. Com efeito, sentindo a insuficiência de mais esse dado, o IPT acrescenta, por via das dúvidas, que o processo ocorre “também em outras regiões”. Quais?



[1] É significativo que o IPT não faça nenhuma referência ao aumento da produção agrícola, maior que o aumento da população. Nem ao fato de que, apesar de a política governamental ter sido até há pouco desfavorável à agricultura, esta ainda forneça mais de 40% das divisas do País (cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Cap. I, 6).

[2] Consta que, em certos lugares, desapropriações feitas em massa com vistas a projetos de grande envergadura determinaram a migração de numerosas famílias. Estas, tendo recebido indenização insuficiente ou paga, por vezes, com grande atraso, foram seriamente lesadas, e lançadas à condição de infelizes migrantes. Tal fato pede uma revisão dos critérios e métodos defeituosos dessas expropriações. Estas abrem o flanco a censuras de caráter moral e também operacional, porém não servem de base a críticas da estrutura agrária.

[3] Intimamente ligado ao fenômeno migratório está o tema da mobilidade social; fator, o primeiro, para obter o segundo (cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Anexo I).

[4] Renomados economistas afirmam que a política econômica seguida em nosso País a partir da II Guerra Mundial, de uma ou outra forma, prejudicou a agricultura em favor do setor industrial. Segundo eles, algumas das conseqüências dessa política foram uma relativa incapacidade da economia de absorver os contingentes de mão-de-obra não-qualificada, um aumento relativamente pequeno da produtividade da agricultura e a constituição de grandes centros industriais com bolsões de populações marginais (cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Cap. I, 3 e Cap. II, 2).

As conseqüências acima são provenientes de uma política econômica errada, e não de problemas ocasionados pela estrutura agrária vigente.

[5] Cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Anexo I.

[6] Pelo contrário, influentes elementos da “esquerda católica”, vituperam o pioneirismo e seus grandes heróis. Assim, D. PEDRO CASALDÁLIGA, Bispo de São Félix do Araguaia (MT), escreveu sobre Anchieta (recentemente beatificado por João Paulo II): “Anchieta foi, até certo ponto um transmissor de um evangelho colonizador. A Igreja deve se penitenciar... É evidente que a descoberta da América foi em muitos aspectos um crime colonialista” (“De Fato”, Belo Horizonte, ano I, no. 6, setembro de 1976).

Em sua autobiografia, D. CASALDÁLIGA é ainda mais enfático: “Acabei, por fim, de entender, e até de sentir, toda a ganga de superioridade racista, de domínio endeusado e de exploração inumana com que foram descobertos, colonizados, e, muitas vezes, evangelizados os novos mundos. “Colonizar” e “civilizar” já deixaram de ser para mim verbos humanos. Como não o são, aqui onde vivo e sofro, as novas fórmulas colonizadoras de “pacificar” e “integrar” os índios. Imperialismo, Colonialismo e Capitalismo merecem, no meu “credo”, o mesmo anátema. Repugnam-me os monumentos aos descobridores e aos bandeirantes. O monumento a Anhanguera em praça pública em Goiânia me dói fisicamente” (Yo creo en la justicia y en la esperanza!, Desclée de Brouwer, Bilbao, Espanha, 1976, p. 176).

Sem dúvida a colonização, na América como fora dela, venceu por vezes mediante a prática de crimes execráveis.

Isto não obstante, é absurdo afirmar que a colonização é intrinsecamente má. E mais ainda, que o são os descobrimentos.

É contra a verdade histórica sustentar que na colonização das Américas tudo não foi senão crime. E que dela não decorreram para a humanidade vantagens consideráveis (cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI, Editora Vera Cruz, São Paulo, 7ª ed., 1979, pp. 120-121).

[7] Em novembro de 1978, provocou grande celeuma na imprensa brasileira a denúncia das chamadas “patrulhas ideológicas”, isto é, a censura clandestina feita no interior de grandes empresas jornalísticas com o objetivo de boicotar as produções consideradas “reacionárias” ou simplesmente não “vanguardistas”.

 


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