Plinio Corrêa de Oliveira

 

São Fiacre, príncipe irlandês,

eremita na França

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 29 de agosto de 1968

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Estátua de São Fiacre, na Capela dedicada ao Santo, em Plouider (foto de Moreau.henril, CC BY-SA 4.0, wikipedia)

Amanhã, 30 de agosto, é festa de São Fiacre (+ 670), anacoreta.

“São Fiacre nasceu no começo do século VII, de uma ilustre família irlandesa. Os escoceses afirmam que ele era filho de um de seus reis e que foi educado com os seus irmãos pelo bispo de Connan. Fiacre aproveitou bem essa educação, pois abandonou, jovem ainda, seus pais e sua família para servir mais a Deus em terra estrangeira e na solidão”.

“Indo para a França, procurou o bispo de Meaux, para pedir que ele cedesse algum lugar isolado em sua diocese. O bispo de Meaux, que era também um santo, encheu-se de alegria e disse a Fiacre: Tenho, não longe daqui, uma floresta de meu patrimônio, que os habitantes chamam Breuil e eu acredito ser própria à vida solitária. Os dois santos foram visitar o lugar e o bispo deu ao emigrado irlandês o que lhe seria necessário”.

“São Fiacre, com a bênção do prelado, limpou o bosque, ergueu uma igreja em honra da Santíssima Virgem, com uma casa ao lado onde habitava e recebeu os hóspedes que ele alimentava com o produto de seu jardim. Mais tarde construiu uma espécie de hospital, onde ele mesmo servia os pobres e, muitas vezes, os curava pela virtude de suas orações. Mas não permitia nunca que as mulheres penetrassem em sua ermida. O artigo que impede as mulheres de entrarem em mosteiros de homens é uma regra inviolável entre os monges irlandeses”. 

“São Fiacre não se desfez dessa regra enquanto viveu e ainda hoje vê-se, por respeito à sua memória, que as mulheres não entram no lugar onde ele vivia em Breuil, nem na capela onde ele foi enterrado”.

Ana de Áustria, rainha da França, dirigindo-se para esse lugar em peregrinação, contentou-se em rezar à porta do seu oratório”.

“Os escoceses contam que durante esse tempo, tendo vagado o trono da Escócia, deputados desse país vieram implorar a São Fiacre que subisse ao poder. Mas ele recusou humilde, mas firmemente. O santo anacoreta morreu a 30 de Agosto de 670, e foi enterrado em seu oratório. Milagres sem conta tornaram seu nome célebre na França, onde geralmente os jardineiros o honram como seu patrono. Com efeito, rezando em seu oratório e trabalhando no seu jardim, São Fiacre mereceu um trono no Céu. Um jardim, também como um oratório, pode tornar-se um lugar de meditação e de prece”.

 

Meaux - Em primeiro plano o Palácio episcopal e atrás a catedral de Santo Estêvao

Esse lindo santo do dia é tirado do Rohrbacher, “Vida dos Santos”.

Não sabemos o que mais especialmente assinalar nesse santo do dia: se é a beleza das várias peripécias que a vida desse santo teve, se é o conjunto dos fatos que se ligam para deixar um perfume de legenda em torno dele. Do ponto de vista da beleza das peripécias, poucas coisas são mais belas do que nós imaginarmos um santo que, afinal, é filho de um rei, que vai para um lugar distante, que foge das pompas da realeza, que se põe só numa floresta, que vai ter com outro santo, os dois vão juntos a um lugar numa floresta aonde encontram um ponto adequado para ele viver, e esse príncipe passa lá a vida inteira, renunciando às honras da realeza.

Mas quando ele já teve mais do que tempo de praticar a vida eremítica, recebe uma oportunidade de se arrepender do que fizera: apresenta-se uma ocasião de voltar para o trono do qual talvez tivesse nostalgia. E ele recusa essa segunda possibilidade e morre como humílimo jardineiro, como humílimo guardião de hospital na floresta de Breuil, na França, na diocese de Meaux.

Acho que talvez a segunda recusa seja mais nobre e mais bela do que a primeira. Porque uma coisa é um homem deixar algo: ele, muitas vezes, pelo costume que tem daquilo que vai deixar, não sente a falta que lhe faz; depois ele ainda não experimentou a amargura daquilo para onde vai, não imagina bem a nova situação como será. A gente pode imaginar um príncipe habituado a um palácio real, que esteja um pouco farto das pompas reais, e que seja muito sedutor, muito atraente a ideia, em certo estado de espírito, de ser um solitário na floresta.

Mas depois que o príncipe deixou o principado, depois que foi morar na floresta, depois que viu quanto dói não ser príncipe e que a floresta perdeu a sua poesia e passa a ser uma luta contra bichinhos, contra vermezinhos, contra o frio, contra o calor, contra mil coisas prosaicas da vida de todos os dias, aí é que ele tem oportunidade de aquilatar bem o sacrifício que fez. E então, na segunda ocasião, recusar pode ser muito mais nobre do que na primeira.

Eu me lembro de um caso que contava um ímpio inglês do século passado, que uma vez fora visitar uma cartuxa na Espanha. E olhando lá para o lugar, lugar lindo, panorama muito bonito com aqueles frades cartuxos, ele teve uma exclamação: “Que lindo lugar!” E o cartuxo (naturalmente é uma piada ímpia), rompendo a regra de silêncio, diz para ele: “Lindo para vir, horrível para ficar”. E caiu no silêncio de novo, para terminar seus dias na cartuxa...

O dito era ímpio, mas exprimia algo de verdadeiro: as situações mais lindas de entrar às vezes são depois duras de ficar. E nós temos esse homem que permanece a sua vida inteira fiel ao primeiro propósito de sua juventude. Aqui está uma beleza de fidelidade, uma beleza de continuidade que devemos apreciar.

De outro lado, os senhores estão vendo também que quadro extraordinário: a floresta de Breuil, na diocese de Meaux, para quem tem o senso da musicalidade das palavras, para quem tem o senso da ortografia não fonética, que sabe que Breuil se escreve B-R-E-U-I-L e não BRÖ (com trema em cima de um O), e que, portanto é um lugar na França, e não na Dinamarca aonde poderia haver, sobretudo na Suécia ou Noruega, um lugar chamado Bröl com mais tremas, e outras coisas; quem sabe o que é a diocese de Meaux – M-E-A-U-X – em que cada letra que não se pronuncia tem uma função para dar beleza musical a isso que um não civilizado escreveria “Mô”, e poderia ser um lugar de malária nas beiras de um rio qualquer... para quem sabe o que são as florestas da França, em que cada árvore é uma obra-prima, em que cada folha mereceria ser colecionada para um mostruário...

Lembro-me que fui visitar uma vez uma casa modesta na França, era outono e a senhora, no abat-jour tinha preso com um alfinete, ou uma coisa qualquer, apenas isso: três folhas de plátano que rolavam pelo chão... mas douradas, presas artisticamente no abat-jour. Acendia a luz, aquilo ficava uma beleza!

Então, a gente imaginar o silêncio da floresta de Breuil, na diocese de Meaux, e naquele isolamento de uma natureza que era mais vigorosa do que a natureza europeia de hoje. Entra dia, sai dia, entra noite, sai noite, ninguém que passa e apenas aquele santo que reza, que está isolado, que aos poucos vai empurrando a erva daninha e a natureza selvagem de perto de si. E como é próprio da Igreja civilizar, é próprio dela até cultivar, é plantar e dulcificar a natureza. E assim vai nascendo em torno de uma cabaninha, vai nascendo um jardinzinho; e o santo que acaricia a florzinha, a folhinha, que planta mais um pouco, que dá glória a Deus franciscanamente pela flor que vem nascendo... E depois o viajante que vem, e que é um perseguido, e que passa por ali e a quem ele consola, que lhe dá um bom conselho, que depois conta na cidade que existe um eremita. Vem depois um doente que ele cura...

Aos poucos aquilo se transforma numa ermidazinha e num hospitalzinho, e aquela obra toda que vai passando e, sobretudo, mais do que isso, como um perfume de odor agradável a Deus, a reputação desse santo que se estende por toda a zona, vai além da floresta de Meaux, ganha as aldeias, chega até as capitais. E então os príncipes e as princesas organizam excursões para ir oscular o pé do santo e este recebe com humildade, respeitosamente deixa-os fazer, cura-os, consola-os, etc.

Então se diz que um santo novo nasceu na França, que é o grande São Fiacre... um aroma de Jesus Cristo que se espalha por toda uma zona. Esta é a história dos santos da Idade Média, a maravilha que a gente encontra nessa vida de São Fiacre.

Ana d'Austria, Rainha de França, pintura de Frans Pourbus le Jeune (1616)

Para nós termos ideia de sua personalidade, basta considerar isto: a permanência da proibição que ele impôs, e não quis que mulheres entrassem lá. Pois bem, as próprias mulheres amaram essa proibição. E mesmo quando uma rainha esteve lá em visita ao local, ela que como soberana podia violar a clausura, de acordo com o Direito Canônico, não o fez. E não violou porque São Fiacre não tinha querido. Mas ajoelhou-se junto à grade e com toda a sua majestade de arquiduquesa d’Áustria, de rainha da França - não se podia ser mais do que isto - se afasta osculando as grades que São Fiacre tinha feito descer para que ela não entrasse.

Isto tudo indica uma espécie de veneração que se estende de geração em geração e que torna até hoje São Fiacre célebre na França.

 

Gravura do século XVII

Os senhores ouviram que São Fiacre é até hoje o patrono dos jardineiros e que concorre com um outro bem-aventurado Fiacre, que dirigia carros de rua em Paris, no século XVI, e do qual veio o nome de “fiacre” para os carros de aluguel que ainda, durante algum tempo, havia na Europa. Era fiacre por causa do segundo São Fiacre. E assim o nome de Fiacre foi retumbando até os dias de hoje. Essa é a beleza da vida dos santos!

Essa é a maravilha desta graça que se evola e que perfuma toda a história e que descansa a alma da gente, depois de se passar o dia com aborrecimentos, às vezes também com decepções. A gente ver a festa de um São Fiacre como essa, é algo que nos dá repouso, dá distensão e que nos faz compreender um pouco daquele perfume que outrora teve a Idade Média.

Régine Pernoud escreveu um livro que se chamava “A Luz da Idade Média”. Poderíamos escrever um livro intitulado “O Perfume da Idade Média”, com todas essas coisas que a Idade Média trazia consigo de imponderáveis...

Podemos olhar para o futuro, e no meio das trevas dos dias de hoje podemos pensar bem no que será o dia de amanhã: essa “Bagarre” (grande triunfo da Igreja e da Civilização Cristã, depois de uma crise, metaforicamente definida na linguagem quotidiana da TFP com esta palavra francesa - cfr. "O Cruzado do século XX - Plinio Corrêa de Oliveira", Roberto de Mattei, Civilização Editora, Porto, 1996, Cap. VII, n. 10)) que se aproxima, mas depois o Reino de Maria. Quem sabe se quando nós morrermos - eu muito antes que os senhores - ouviremos também falar da glória de algum santo que num lugar inteiramente ermo, deserto, onde só há árvores, onde algum erudito diz que foi o Largo da Sé, que nesse lugar glorificará a Deus num isolamento espantoso.

E então diremos: lembra-se do tempo horroroso, aquele em que nós comentávamos que no largo tal tinha o marco zero, que não sei mais o quê? Lá agora não resta nada, mas existe a glória de São Fulano de Tal, do qual se contam tais e tais fatos maravilhosos. E nossos olhos se fecharão em paz com a ideia de que o perfume do Céu voltou à terra, que o Céu e a terra estão unidos e reconciliados. Essa é a perspectiva que encontramos diante de nós.


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