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Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

 

 

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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Parte II

 

Capítulo 8

 

As sublimidades

do mistério nos levam à

contemplação de Deus

 

( Para Textos Ilustrativos deste capítulo clicar aqui )

 

1. Os esplendores do mistério

Todas as vias da contemplação sacral vistas até agora conduzem aos esplendores da luz; o presente caminho, por paradoxal que seja, leva aos esplendores da escuridão, pois seu tema é o ignoto. E o ignoto também tem os seus esplendores.

Na contemplação sacral quase tudo são luzes e cores, refulgências e esplendores, mas também há lugar para o mistério, com sua beleza própria, e com sua ‘atraente superioridade’.[1]

Por que atraente e por que superioridade? Não seria exatamente o contrário? O mistério não seria uma muralha colocada diante de nós, que nos impede de ver e caminhar? E que nos prejudica? No que esse empecilho é atraente?

Dir-se-ia que o mistério é o contrário da contemplação; que o mistério é a névoa, é a escuridão. O razoável é voltar-lhe as costas e observar somente os fenômenos comprováveis, determinando as leis que os regem, dentro de um critério absolutamente científico.

Aliás — prossegue a objeção — a Ciência vai acabar por dissipar todos os enigmas. É preciso fugir das vãs especulações que eles alimentam.

Os espíritos positivistas — teóricos ou práticos — desprezam os mistérios por julgarem que são o oposto da realidade. Entretanto, é exatamente por amor à realidade que se deve amá-los.

‘Um dos aspectos mais característicos da inocência é a facilidade em admitir o mistério, em não se sentir insultado por ele; pelo contrário, conviver com ele e compreender que o mistério não é um negrume hostil, mas uma floresta, cuja simples existência é sugestiva para a mente humana.

‘Para a alma inocente, o belo do mistério é o auge da verdade. Pelo contrário, a alma esclerosada pela filosofia das luzes, pelo positivismo e doutrinas congêneres, sente no mistério algo que a atormenta’.[2]

 

2. O espírito hierárquico leva a amar o mistério

Ama-se o mistério quando se tem um espírito profundamente hierárquico.

Quando se diz que uma pessoa tem espírito hierárquico logo se imagina que ela é intransigente em manter a hierarquia em tudo que está abaixo dela. E que tende a desconsiderar o que lhe está acima. O espírito hierárquico seria ditado pelo orgulho; deseja a sujeição do que lhe é inferior, mas é igualitário em relação ao que o supera.

Há pessoas assim. Para elas a hierarquia tem, por assim dizer, mão sem contra-mão, conforme as favoreça ou dessirva. Este não é, porém, o verdadeiro senso antiigualitário.

O verdadeiro espírito hierárquico ama o que está abaixo de si, mas, sobretudo, o que o supera. Não é fácil para a natureza humana corrompida pelo pecado original, mas é a plenitude do senso antiigualitário.*

* Sobre a doutrina da Igreja a respeito das desigualdades harmônicas, ver Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Livraria Civilização-Editora, Porto, 1992, p. 293 ss.

Ora — e aqui chegamos ao ponto — a busca da verdade é uma ascensão. E como toda ascensão, o auge dela é um pico nevado, coberto de névoa e que se perde nas alturas. Renunciar a essa névoa é desistir de escalar o pico. Compreender e amá-la é compreender e amar a ascensão. É preciso amar a névoa para apreciar verdadeiramente as alturas.

E é por isso que se pode falar na ‘atraente superioridade do mistério’.[3] Devemos amar todas as superioridades. A superioridade deve ser, para nós, atraente. E assim amar o mistério. Amar a Deus, que está acima de todas as hierarquias e é o Mistério por excelência.

‘Deus está para além de todas as criaturas. Ele é o insondável, o misterioso, o inatingível, o inimaginável. A pessoa olha para si mesma e exclama: não posso conceber como é Deus, mas esse mistério, que paira por cima de tudo, me encanta.

‘Creio mesmo que um dos encantos das Igrejas góticas é que elas indicam como Deus é, e ao mesmo tempo possuem um mistério por onde se percebe que há nelas uma penumbra qualquer que é mais brilhante do que a luz, e que é o mistério’.[4]

O mistério está no alto de toda hierarquia. E é preciso compreendê-lo e amá-lo, como o fizeram todos os santos, sobretudo os maiores místicos, como São João da Cruz, Doutor da Igreja, do qual serão citados adiante alguns textos.

 

3. Atitudes errôneas face ao mistério

Não é preciso dizer — porque todos conhecemos casos — que a atração pelo mistério pode gerar desvios perigosos, como o ocultismo, a superstição, a adoração de si próprio. Sendo nebuloso, ele não pode deixar de ser um convite permanente para aqueles que desejam, como se diz, pescar em águas turvas.

Visceralmente infensos a toda forma de esoterismo, saibamos ir ao ignoto de uma maneira católica, desinteressada, desapegada. Sem segundas intenções.

Mas, além do ocultismo, há duas outras atitudes errôneas face às superioridades do mistério:

1. A indiferença. Os indiferentes ao mistério são os ávidos pelas coisas concretas, pelo dinheiro, pela técnica, pelo vida no mundo, e voltam as costas para qualquer coisa que não seja isso.

2. A apetência egocêntrica insana, que dá vazão às tendências más da pessoa. O egocêntrico, por definição, só pensa em si, aprecia apenas aquilo que está à sua altura.

A alma que tem inocência, porém, ama o mistério, pois reconhece as próprias limitações e ama o que está acima dela.

 

4. As gradações do mistério

Existem mil modos de o mistério se apresentar. Há o mistério da escuridão total, e ele tem sua beleza. Há o mistério da escuridão com vislumbres; e há o mistério das coisas claras nas quais há escuridão.

‘Além disso, há uma escuridão que não é propriamente do preto, mas do que o francês chama foncé (o carregado). Um estudo da fantasmagoria dos mistérios poderia ser feito.

‘E há o mistério da morte. A pessoa, ao morrer, pode dizer o seguinte: «Vou imergir em pleno mistério; esta é a imersão no mistério infinito e benévolo que me recebe». Compreendendo-se bem, morrer assim é mais do que viver’.[5]

‘Não me parece que uma alma esteja pronta e madura para ser chamada por Deus sem que ela tenha esse senso do mistério bem formado’.[6]

Caso se soubesse apresentar a religião aos hippies precisamente sob o ângulo dos mistérios, muitos perderiam suas intenções predatórias, ‘que é uma vontade de escangalhar e de vergastar, porque a existência moderna lhes é apresentada como sendo o último aspecto, a razão última das coisas’.[7]

Ora, ‘a procura da verdade não visa terminar em uma apoteose com todas as luzes acesas, porque isto seria uma frustração’.[8] É preferível que ela termine na penumbra. Deve-se dizer aos hippies: «Fique sabendo que há a penumbra e que, para além da penumbra, há o mistério. Se há o mistério, transcenda».

‘O homem, hoje, facilmente perde o senso do mistério porque se esquece de transcender’.[9]

 

5. A contemplação sacral desfecha no mistério

Os diversos caminhos para a contemplação sacral examinados até aqui são aplicações do princípio da analogia, ou seja, das semelhanças existentes entre o Criador e o criado. Esses caminhos nos ajudam, e muito, pois podem nos levar para bem alto. Eles não estão centrados na idéia do mistério, mas da beleza.

Entretanto, esses caminhos, tão excelentes, não nos podem levar até um conhecimento pleno de Deus, que é infinito. O que é a beleza de um castelo ou de uma catedral gótica comparada com a formosura suprema de Deus?

Deus está além de tudo que possamos conceber e é incognoscível. Portanto, o desfecho da contemplação sacral é o senso do mistério.

Entre Deus e nós há uma separação, uma separatio, na linguagem tomista: separação total, absoluta, infinita. É um reino de mistérios que nossa mente limitada jamais poderá atravessar.

 

6. Um Deus sem mistérios não seria Deus

Mas o mistério é ‘um desafio amistoso, não uma agressão’[10]. Pois prepara a fé, e leva ao desejo de uma infinitude que de fato só no Céu poderemos saciar.

A busca do mistério, que tantas vezes resulta na adoração de si próprio, e outras tantas conduz à superstição, ao ocultismo, pode gerar atitudes saudáveis? — Sem dúvida, e atitudes de grande elevação, num quadro radicalmente oposto ao da contemplação de si mesmo.

Transcendendo toda ciência

Do Cântico espiritual:

Entréme donde no supe

Y quédeme no sabiendo

Toda ciencia trascendiendo.

[...]

Este saber no sabiendo

Es de tan alto poder

Que los sabios arguyendo

Jamás le pueden vencer;

Que no llega su saber

A no entender entendiendo,

Toda ciencia trascendiendo.

 

Y es de tan alta excelencia

Aqueste sumo saber,

Que no hay facultad ni ciencia

Que lo puedan emprender;

Quien se supiere vencer

Con un no saber sabiendo,

Irá siempre trascendiendo.

São João da Cruz

Na verdade, o mistério constitui um paradoxo, pois aquilo que é um «saber não sabendo» — no dizer de São João da Cruz* — ao mesmo tempo sacia e desperta sede.

‘Um Deus sem mistérios para suas criaturas não seria Deus. A religião pede certo senso do mistério. As coisas de Deus ao mesmo tempo dizem e calam muito; e não se sabe se dizem mais pelo que falam, ou pelo que calam’.[11]

«Como assim? — pode perguntar alguém. Dizer calando?» — É um paradoxo, que levou São João da Cruz a discorrer, em outro poema, sobre «a música calada».

É que, pela religião e pelos degraus das coisas criadas, podemos ascender muito em direção a Deus. Mas, sendo Ele infinito, há um momento em que se percebe a infinita distância que O separa de nós. E temos então ‘a impressão do inimaginável, do inconcebível, a impressão de absoluto que é o que há de mais ativo, de mais dinâmico e que mais nos entusiasma’.[12]

Inimaginável e inconcebível. Pode-se usar também o termo inefável, cuja composição etimológica — não-fável — indica o que não pode ser expresso, ou seja, o inexprimível.

‘E então se compreende que em certas liturgias orientais, na hora da Consagração, corre-se o véu. Só se ouve o padre dizer as palavras sagradas. Esse véu esplendoroso simboliza que ali se passam coisas inefáveis’.

‘O próprio véu não é só um véu. Ele esboça um mistério. É-se levado a perguntar se o conhecimento do mistério não traz qualquer coisa que corresponde a uma zona da nossa alma que também tem uma capacidade de cognição prodigiosa’.[13]

 

7. A propensão para o sublime nos leva até Deus

Ter abertura para o maravilhoso, ou o sublime, é a primeira aspiração que a alma deve ter.

— O que o sublime representa na escala das belezas?

‘É um grau de beleza superior ao homem e que o deixa excedido, superado. Quando a alma tem muita propensão pelo sublime, o gosto pelo espiritual acaba se definindo melhor nela. Porque a própria idéia da existência de um ser que não está sujeito à contingência da matéria é sublime, e é mais bela que todas as belezas da matéria’.[14]

Há aí uma interação, porque quando entramos pela consideração das coisas espirituais, nossa tendência para o sublime nos faz compreender algo que a matéria não nos deixa compreender.

‘Vamos então para o que é espiritual! Para o que é metafísico, no sentido etimológico da palavra: o que está além do físico. Do espiritual, tendemos necessariamente para Deus, Espírito perfeito, puríssimo, cuja consideração nos encanta completamente, nos empolga completamente, nos enche completamente de adoração, de veneração, de confiança’. [15]

‘Essas são como que colinas que se vão sobrepondo umas às outras, até tocar na fé em Deus’. [16]

 

8. O senso do mistério decorre do senso de nossa contingência

A simples frase «Deus criou o mundo do nada» envolve a noção de mistério, e assim muitas outras sentenças que, à primeira vista, podem parecer extremamente simples.

Segundo a mais básica filosofia tomista, «as criaturas não são necessárias, nem incausadas, nem eternas, nem infinitas».* Portanto, elas são contingentes: poderiam existir ou não.

* Pe. E. Collin, Manual de Filosofía Tomista, L. Gili Ed., Barcelona, 1950, p. 110.

Nossa natureza nos faz, a todo momento, tropeçar em nossas limitações. Assim sendo, freqüentemente o mistério marca sua presença.

‘Decorre daí que o homem fica com uma espécie de fundo de mistério na cabeça. É o tal senso do mistério que todo homem carrega consigo. É um mistério que não deve ser visto como algo de contraditório com a natureza do ser contingente, mas como algo que tem um mundo de harmonias para cujo conhecimento o ser contingente tem uma apetência amorosa’.[17]

A existência de uma hierarquia também nos faz esbarrar no mistério, pois quem é superior necessariamente tem aspectos que o inferior não compreende inteiramente.

Aqui podemos desenvolver e ampliar a tese do Pe. Ramière*: assim como Deus criou sistemas de planetas e satélites no universo material, haveria de querer que todas as criaturas ficassem agrupadas hierarquicamente segundo suas excelências de caráter espiritual. Assim sendo, há homens-planeta e homens-satélite, o que é um elemento da beleza do universo. Acontece, entretanto, que o planeta representa sempre certo mistério para o satélite, fato que este deve compreender e amar.

* Pe. Henri Ramière S.J. (1821-1884), O Reino de Jesus Cristo na História, Livraria Civilização-Editora, Porto, 2001.

O senso do mistério decorre, pois, da noção da contingência, do senso de nossa limitação. Uma vez que a nossa contingência e a de toda a criação constituem realidades irrecusáveis, o mistério é um elemento integrante e indispensável da realidade. Recusar o mistério é fugir do real.

Assim sendo, o homem deve se compenetrar de sua contingência.

‘É a tal alegria primeira, em que a pessoa se sente radiosa de ser muito pequenina em face do Imenso; ela não quer ser grande em comparação a Deus, e toda a sua suficiência se resume em sentir-se zero diante de Deus’.[18]

 

9. Uma cultura sem mistério torna-se banal

O medieval tinha alto senso do mistério. A ruptura se deu na Renascença, que entrou em choque com a idéia de transcendência. ‘A Itália do século XVI rompeu com o mistério’, de que são exemplos importantes igrejas dessa época existentes em Roma. E ‘uma cultura sem mistério se torna banal’.

Conseqüentemente, face ao mistério, ‘é preciso saber dizer: «Que maravilha! Vai além do que eu entendo!»’[19]

 

Fontes de referência:

 

[1] Civilização e Tradição, seção Ambientes, Costumes, Civilizações, in Catolicismo, nº 109, janeiro de 1960. [2] 5-9-1974. [3] Cfr. fonte de referência nº 1. [4] 25-3-1983. [5] 12-2-1974. [6] 12-2-1974. [7] 12-2-1974. [8] 12-2-1974. [9] 12-2-1974. [10] 5-9-1974. [11] 25-3-1965. [12] Sem data. [13] 5-9-1974.  [14] Sem data. [15] Sem data. [16] Sem data. [17] Sem data. [18] Sem data. [19] 15-5-1976.