O gênio francês, ágil em conscientizar, lúcido no pensar, brilhante no exprimir, sabe debater esses problemas numa clave que os relaciona, em numerosas conjunturas históricas, com as cogitações universais da mente humana. Ademais, o Projet afirmava ter como uma de suas metas a interferência na política interna, e mais especialmente na luta de classes dos demais países. Portanto, uma vez que o socialismo havia se assenhoreado do Poder, era de temer que utilizasse os recursos do Estado francês, e da irradiação internacional da França, para levar a cabo tal propósito Assim, tratando da situação na França, as sociedades que subscreviam esta Mensagem se davam claramente conta de que muitas questões, naquela época em fermentação mais ou menos latente em seus respectivos países, poderiam ter seu curso apressado e quiçá arrastado ao ponto crítico, em função da repercussão mundial do que na França viesse a se passar [30]. Era uma Mensagem de alerta sobre a incompatibilidade entre os princípios perenes da civilização cristã, de um lado, e, de outro lado, a reforma autogestionária, na qual o PS prometera engajar a França, quando das eleições de 1981. Reforma esta gradual, mas também total, demolidora do direito de propriedade sobre o solo, a empresa, a escola privada, invadindo a família para organizar os filhos contra os pais, e não poupando sequer, em seu termo final, os lazeres, o aménagement doméstico (isto é, o arranjo interior da casa) e a própria pessoa de cada francês [31]. 2. Oportunidade única: o socialismo mostra sua verdadeira faceA que título se ocupavam as TFPs de uma problemática à primeira vista toda ela francesa, e ante a qual, por conseguinte, só competiria à TFP francesa tomar posição? [32] Há 50 anos, pela graça de Nossa Senhora, eu estava na luta contra-revolucionária [33]. Ao longo desse tempo, eu nunca tinha visto o socialismo apresentar-se com tanta clareza e tanta precisão como nos documentos do Partido Socialista francês [34]. Nunca tinha visto os revolucionários dizerem tão claramente e tão cruamente tudo aquilo que, segundo as conveniências do jogo deles, não deveriam dizer. E nunca vira um documento em que esse adversário se comprometesse tanto, quanto no conjunto de documentos que serviram de estaqueamento à nossa Mensagem. Sem essa documentação, nossa denúncia não teria valido nada [35]. Tudo aquilo que o socialismo viveu de não dizer com clareza, viveu de manter na ambigüidade, o Partido Socialista francês, por razões que ignoro, declarou com uma precisão, com uma força de coerência extraordinárias, em vários congressos sucessivos, em vários manifestos, em vários documentos. De maneira que o fundo radical não apenas comunista, mas transcomunista da meta autogestionária foi confessado e proclamado como próprio pelo socialismo francês. Pela primeira vez em minha vida, eu via o socialismo inteiramente desmascarado por si próprio. E com a grande vantagem de ser desmascarado, não pelo livro de um intelectual qualquer, a respeito do qual o partido pudesse dizer que não representava o seu pensamento, mas por resoluções públicas e oficiais do próprio Partido Socialista autogestionário vencedor. Apresentava-se diante de mim, portanto, uma oportunidade única de arrancar a máscara do socialismo internacional. Então me atirei à denúncia desse socialismo, bem certo de que os meus leitores saberiam ver que, entre socialismo e socialismo, poderia haver diferenças de matizes, mas havia sobretudo identidade de corpo doutrinário, de metas e de ação. E que, portanto, o que de um deles se dissesse, do outro também se poderia dizer. Tudo isso nos convidava a dar o grande lance, que de fato foi dado [36]. 3. Estupor: seis páginas, 52 países, 33,5 milhões de exemplares
Comecei o trabalho de redação algum tempo depois de Mitterrand ter sido eleito presidente em maio de 1981. Uma das minhas preocupações era surpreender a autogestão em seu nascedouro. O mito da autogestão começava a nascer e o mérito estaria em denunciar o mito enquanto ele ainda fosse pequenino [37]. Um trabalho desses não se faz da noite para o dia. Foi um documento trabalhosíssimo. Demorei, no meio de minhas ocupações, uns três ou quatro meses para acabá-lo. Às vezes eu viajava para uma cidade do interior e ali redigia algumas partes. Outras vezes trabalhava em São Paulo mesmo. E em São Paulo era um trabalho quase diário [38]. A Mensagem ficou pronta, e no dia 9 de dezembro de 1981 ela foi publicada simultaneamente nos Estados Unidos, no Washington Post; e na Alemanha, no Frankfurter Allgemeine Zeitung; e posteriormente reproduzida em 45 diários de maior circulação de 19 países da Europa, América e Oceania. Um resumo foi publicado depois em diversos países dos cinco continentes. No total, a Mensagem saiu em catorze idiomas, atingindo uma tiragem total de 33,5 milhões de exemplares, em 155 publicações de 69 países, alcançando repercussões em 114 nações [39]. Esse grande lance foi dado pelas treze TFPs então existentes, dirigindo-se solidariamente à opinião universal e utilizando para isto um meio de propaganda especial: publicando em seis páginas de jornal a matéria de um pequeno livro de condensação. Não me consta que se tenha feito algo com tanta audácia de publicidade. E, de uma vez, nos principais jornais dos principais países do mundo [40]. Até então, em escala internacional, o socialismo autogestionário ainda não fora questionado em seus últimos fundamentos filosóficos. Inegavelmente a Mensagem das treze TFPs abriu uma brecha no silêncio geral a tal respeito. Pondo em evidência a incompatibilidade do programa do PS francês com a doutrina tradicional do Supremo Magistério Eclesiástico, e questionando gravemente o sistema autogestionário, a Mensagem concorria para dissipar a “lua-de-mel” com a opinião pública, na qual se expandia tão favoravelmente o prestígio da autogestão. * * * No Brasil, a Mensagem só foi publicada um mês depois. É que a crise polonesa de fins de 1981 concorreu fortemente para desviar a atenção mundial do êxito eleitoral do Partido Socialista francês* [41]. * Essa crise de 1981 quase envolveu o risco de uma terceira guerra mundial, pela reação causada no Ocidente por uma ameaça soviética de intervenção na Polônia, a pretexto do crescimento das greves e reivindicações sindicais de fins de 1980. E galvanizou de tal forma as atenções que, nessas circunstâncias, o esforço publicitário da Mensagem seria inútil. Passada a crise, e cessada a atmosfera de superexcitação por ela causada, a Mensagem foi por fim publicada na Folha de S. Paulo do dia 8 de janeiro de 1982. 4. Grande parte da mídia se mostra incomodada; houve exceçõesAntes dessa publicação, era de esperar que os órgãos da mídia brasileira se mantivessem em atitude de simpática expectativa. Pois não seria outro o sentimento que lhes seria natural, vendo um compatriota atuar como porta-voz de tantas entidades de vários países, em um esforço publicitário de escala mundial. Pelo contrário, em lugar de nos pedir que antecipássemos algo sobre o conteúdo da Mensagem, sobre a sua essência, sobre o seu pensamento, o que se viu foi, na maioria dos casos, investirem raivosamente como quem se sentisse mordido na carne viva. Esses meios apresentaram sobre o fato um noticiário carregado de insinuações, as quais fugiam inteiramente ao tema tratado, num empenho em arrastar a discussão para o campo do mero fuxico [42]. Foi só sair a notícia de que as TFPs iniciaram essa campanha, que se levantou a zoeira: “De onde vem o dinheiro”? Interessante notar que não se procurava saber de onde vinha o dinheiro do Partido Comunista Brasileiro. Nem de onde vinham os recursos, incomparavelmente maiores, que serviram para a campanha de Mitterrand na França e que propiciaram a vitória dele. Aos jornalistas que me perguntavam sobre isto, eu respondia que as TFPs eram treze, e todas administrativa, jurídica e economicamente autônomas. Cada uma tinha as suas próprias finanças. Para saber de onde vinha o dinheiro, era preciso perguntar a cada uma delas no respectivo país. Eu só podia, portanto, falar da TFP brasileira: os recursos para a difusão da Mensagem provinham de sócios e amigos da nossa entidade. E nenhuma entidade fornece a terceiros a nominata de seus doadores. Se, no tocante à TFP brasileira, um órgão do Poder Público, com competência jurídica para se informar, nos pedisse esses nomes, responderíamos no mesmo instante e com a maior facilidade. Tal órgão, de sua parte, ficaria obrigado ao sigilo próprio a uma repartição oficial. Eu ainda interpelava esses jornalistas: a Mensagem das TFPs versava sobre um alto tema, que era a situação da França, a filha primogênita da Igreja, uma das nações mais ilustres da Terra. A partir dessa nação, começava a soprar sobre o mundo uma ideologia que, por uma série de razões, tinha todas as condições para prosperar. Assim, era todo o mundo ocidental que estava no risco de ser posto em jogo, como resultado da vitória socialista na França. Sobre esse tema, a mídia não tinha nada a perguntar? Ela não se alarmava com essa perspectiva? Não a preocupava? O grande problema do mundo para a mídia era saber onde as TFPs tinham arranjado dinheiro para essa publicação? Quando alguém levanta a questão do dinheiro antes mesmo de ter levantado a questão do mérito de um documento, dá mostras de que tal documento o está incomodando. Por que não o refutavam? Por que silenciavam sobre o seu mérito? [43] Houve exceções nessa reação de certa mídia, como por exemplo um repórter da Folha que me entrevistou. Ele de fato fez perguntas sérias sobre o mérito do documento. Mas, fora dele, muito poucos. 5. Publicada no mundo inteiro, proibida na FrançaEm nenhum dos países encontraram as TFPs obstáculos para publicar, como matéria paga, sua Mensagem. De par em par, abriram-se para elas os órgãos de imprensa [44]. Não na França, onde a imprensa inteira se fechou, eriçada como um porco-espinho que levou um toque de lança [45]. Abstração feita dos órgãos declaradamente socialistas ou comunistas, foi oferecida sucessivamente a seis diários franceses de grande porte, de tiragem superior a cem mil exemplares, a publicação do texto. Dois desses jornais chegaram até a se comprometer formalmente a publicar a Mensagem. Tão firme era esse compromisso que, na perspectiva de tal publicação, e de acordo com ambas as partes, uma agência publicitária chegara, no dia 11 de dezembro, a receber integralmente o preço estipulado. Tudo isto não obstante, no dia 6 de janeiro de 1982 essa agência prevenia às TFPs que os dois cotidianos em questão acabavam de se recusar a cumprir o compromisso assumido. Motivo alegado: nenhum. 6. Governo francês e esquerdas: reações furibundas mas esquivasMas a Mensagem foi abrindo seu caminho largamente pelo mundo afora [46]. Em 12 de dezembro de 1981 (ou seja, três dias após a publicação do mencionado documento), o International Herald Tribune assim descreveu a reação do governo socialista francês face à aludida análise do Projeto Socialista para a França dos anos 80:
Reação esta que em vão se esperaria, pois que não houve [47]. No dia anterior, eu havia lido a correspondência de Paris, enviada para a Folha pelo Sr. J. B. Natali. Nos círculos que o sr. J. B. Natali quis ouvir, isto é, no Quai D'Orsay (Ministério do Exterior) e o PS (Partido Socialista), as reações foram intensas. Surpreendentemente intensas. No Quai D'Orsay, um porta-voz disse que "as críticas da TFP ao governo francês são abusivas e excessivas". Mas acrescentava que “contra elas a França não levantará sequer um dedo por respeitar a liberdade de expressão”*. * Esse “respeito” pela liberdade de expressão por parte do governo Mitterrand recebeu um desmentido pelos fatos, face à negativa maciça dos jornais franceses de publicar a Mensagem. Ficou patente que a máquina governamental francesa levantou não apenas um dedo, mas exerceu uma pressão de bastidores que teceu uma pesada cortina de silêncio publicitário para impedir o estudo das TFPs de circular na França. Nessa linha, ainda foi mais longe o sr. Philippe Parrentir, do Partido Socialista: “os senhores da TFP são loucos delirantes”. E uma das fontes latino-americanas do serviço de Relações Exteriores do primeiro-ministro disse: “uma organização com essa sigla (TFP) já evoca algo que provoca nos franceses uma enorme repulsa porque lembra ‘Trabalho, Família, Pátria’, slogan de Pétain”. O Sr. J. B. Natali abordava ainda outros assuntos: preço pago pela campanha, o enorme “mistério” mantido por meu inteligente e valoroso amigo Caio Xavier da Silveira, diretor da TFP brasileira presente em Paris, acerca das demais cidades onde seria publicada a Mensagem etc. Evidentemente, temas colaterais, feitos para acirrar a polêmica, desviando-a ao mesmo tempo do ponto essencial, isto é, da análise das teses e dos argumentos contidos na Mensagem * [48]. * Houve outras reações dignas de nota, registradas no livro Um homem, uma obra, uma gesta; Um resumo dessas reações pode dar alguma idéia delas: “A imprensa esquerdista desatou-se em fúria contra ‘as seis páginas de divagações anti-Mitterrand’ (Le Canard Enchainé, Paris, 16/12/81), verberando o ‘pavé indigesto’ ofertado pelo ‘professor brasileiro’ (Le Matin, Paris, 11/12/81), bem como a ‘publicidade de ditadores’ proveniente desse movimento de ‘iluminados integristas’ (Libération, Paris, 19/12/81), e outros insultos do gênero. “L’Humanité (11/12/81), órgão do Partido Comunista francês, saltando de cólera, se perguntava: ‘Quem permite a não se sabe que associação, mais ou menos brasileira, espalhar, a golpes de bilhões, idiotices destinadas a dar uma imagem repugnante do governo da República francesa? [...] É preciso não dramatizar esta barulhenta campanha internacional’. “De fontes do Governo e do PS, a linha de conduta foi, de um lado, se esquivar sistematicamente da análise do cerne doutrinário da Mensagem. Uma das fontes do Ministério das Relações Exteriores chegou mesmo a declarar que ‘neste gênero de situações [...] sempre é mais conveniente não dizer nada’ (Jeune Afrique, Paris, 3/3/82). “O primeiro-ministro Pierre Mauroy, em debate na Assembléia Nacional, referindo-se indiretamente à Mensagem, disse que, “quando a direita quer parecer nova, ela escava o arsenal das doutrinas anti-igualitárias e anticristãs [sic], que produziram ao longo da primeira metade deste século os resultados que todos conhecemos. Tornar-se-ia grave que, por simples hostilidade para com o governo, democratas se deixassem assim enganar por falsas idéias novas” (Le Monde, Paris, 18/12/81). “Em Buenos Aires, a embaixada da França acusou a TFP, em nota oficial publicada em La Nación (20/1/82), de ter ‘insultado’ o programa do governo francês e a divisa ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’, que — segundo o comunicado da representação diplomática — estaria ‘inscrita’ na bandeira de seu país. (Onde? Na bandeira tricolor francesa não há qualquer inscrição...). A TFP argentina respondeu em nota publicada no mesmo La Nación (24/1/82), pedindo a dita Embaixada que exibisse onde, na Mensagem, se encontrava o tal ‘insulto’. A embaixada manteve-se em explicável silêncio”. * * * Eu não estava disposto absolutamente a cooperar, de minha parte, para que a contenda descambasse para esse nível. Escrevi então um artigo para a Folha de S. Paulo em que adiantei para o público as teses essenciais que a Mensagem das TFPs continha* [49]. * Este artigo tinha como título Autogestão, dedo e fuxico, e foi estampado na Folha de S. Paulo do dia 11 de dezembro de 1981. * * * A certa altura me chegou ao conhecimento que o diretor do Ufficio Stampa do Vaticano, em contato com um representante do Ufficio da TFP na Cidade Eterna, afirmara que a Mensagem havia causado em Roma uma impressão profunda, e pedira um exemplar [50]. 7. Exorcizando o socialismo enquanto filho da Revolução FrancesaO socialismo autogestionário francês se proclamava inteiramente coerente com a trilogia da Revolução de 1789: Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Para ele, a abolição do patronato na empresa era a conseqüência lógica da instauração da República. Ele apontava no patrão um pequeno rei que remanesce no interior da empresa, e no rei o grande patrão que a república democrática eliminou. Por isso, o PS francês traçava, entre a vitória final do socialismo autogestionário e a Revolução Francesa, toda uma genealogia de revoluções: 1848, 1871 e a Sorbonne-1968 [51]. E o que estava dito na Mensagem era precisamente isto: que o socialismo autogestionário se dizia, ele próprio, a continuação da Revolução Francesa. E, no proclamar este fato, ele denunciava a Revolução sua mãe. Também denunciava a si mesmo, e com argumentos tão bons, que foi com as próprias palavras do socialismo autogestionário que fizemos, como que num exorcismo, o monstro da Revolução bradar para o mundo: “O socialismo é filho da Revolução Francesa”! De fato, há qualquer coisa na Revolução Francesa que faz dela a tradução, para a ordem temporal, de todos os erros do Protestantismo na ordem espiritual (cfr. Revolução e Contra-Revolução, cit.). E como o que se passa na ordem temporal abala muito mais a mentalidade das pessoas de nossa época do que aquilo que se dá na ordem espiritual, uma bombarda jogada na Revolução Francesa seria muito mais nociva ao dinamismo geral da Revolução do que a bombarda jogada na própria fronte já envelhecida, já empergaminhada e sem expressão do velho Protestantismo. Portanto, era ali que a Revolução tinha que ser ferida. E era o que estava dito na Mensagem. Com isso fizemos uma Mensagem que tocava no essencial do espírito da TFP, que é o espírito católico enquanto denunciante da Revolução. Nós fizemos disso algo que de fato atingiu todas as extremidades da Terra [52]. 8. “Laborem Exercens”, um endosso ao socialismo autogestionário?A Mensagem estava acabando de ser redigida quando saiu a lume, em 14 de setembro, a encíclica Laborem Exercens, de João Paulo II. Os mais importantes meios de comunicação social do Ocidente a acolheram com ampla e simpática publicidade. Sem dúvida, a Encíclica apresentava ensinamentos novos, nem todos desenrolados até suas últimas conseqüências, doutrinárias e práticas. Isto propiciou que, o mais das vezes, a publicidade dada ao documento difundisse a impressão de que, conforme João Paulo II, o regime socializado, propugnado pelo PS francês, encontraria na Laborem Exercens importante respaldo [53]. Seria ela uma versão católica do socialismo autogestionário francês? Compreende-se o alcance da pergunta, especialmente na perspectiva católica, que era a das TFPs e da Mensagem lançada por estas*. * Esta pergunta foi abordada de frente na Nota 29 da Mensagem. Ela apresenta um resumo da doutrina tradicional da Igreja que fundamenta o direito de propriedade a partir da apropriação daquilo que não tem dono, ou da remuneração do seu trabalho, ou ainda da herança adquirida por sucessão hereditária. Traz então textos pontifícios que trataram do assunto, como a Rerum Novarum, de Leão XIII, a Quadragesimo Anno, de Pio XI, e a Radiomensagem de Pio XII, de 14 de setembro de 1952, ao Katholikentag de Viena. Depois explica que o Estado, sem exorbitar de sua função específica, pode também, de modo restrito e em circunstâncias especiais, possuir e administrar bens por razões de interesse comum. Entretanto ele deve deixar os demais bens nas mãos do domínio privado. E esta é a ordem natural das coisas. Já o Projet do PS francês hipertrofiava a propriedade coletiva dos grupos sociais, transformando cada um destes, em relação a seus componentes, em um mini-Estado totalitário. E o Projet qualificava de privada a propriedade autogestionária, se bem que esta fosse instituída — em larga medida imposta — e até regulada discricionariamente pelo Estado. Ora, a publicidade que se tinha feito em torno da encíclica Laborem Exercens comunicava a impressão de que João Paulo II afirmara já não ser um imperativo da ordem natural que a propriedade privada (portanto a não-estatal) fosse habitualmente individual. E que, em princípio, era legítimo e até preferível ser um direito, o de propriedade, normalmente exercido, não por proprietários individuais, mas por grupos de pessoas, para melhor atender à sua finalidade social. Nisto consistiria a socialização da propriedade. A ser aceita essa intelecção do documento de João Paulo II, seria preciso concluir que tal socialização estaria em forte contraste com os princípios do Magistério Pontifício tradicional, e que a encíclica dava importante respaldo ao regime socializado propugnado pelo PS francês. Ao católico zeloso, seria penoso carregar nos ombros a responsabilidade de fazer sobre a encíclica de João Paulo II essas afirmações. Pois teriam um alcance incalculável no plano religioso e socioeconômico. Com efeito, a se admitir semelhante oposição entre o referido documento pontifício e os documentos tradicionais do Supremo Magistério da Igreja, daí se desdobrariam conseqüências teológicas, morais e canônicas sem conta. O PS francês afirmava a conexão lógica entre a reforma autogestionária da empresa, por ele preconizada, e a da economia em geral, a do ensino, a da família e a do próprio homem. Essas múltiplas reformas não eram, para os socialistas franceses, senão aspectos de uma só reforma global. E tinham razão: “Abyssus abyssum invocat” - “Um abismo atrai outro abismo” (Ps. 41, 8). Portanto, não se via a possibilidade de que um Pontífice Romano, abrindo as comportas à autogestão pleiteada pelo socialismo francês, apoiasse implícita ou explicitamente essa reforma global. * * * A Mensagem punha muito em realce o imperialismo doutrinário que marcava a política exterior do PS, e portanto também do governo socialista francês. Ela mostrava que a expansão internacional do socialismo autogestionário era meta relevante da diplomacia do Sr. François Mitterrand [54]. O Presidente francês já havia dado os primeiros passos nesse sentido, manifestando o seu apoio ao governo da Nicarágua e à guerrilha em El Salvador [55]. 9. A Mensagem quebra a “aura” da autogestão. Conseqüências em cadeiaO fato inegável é que o socialismo autogestionário francês foi a seu tempo a ponta de lança da Revolução e o mito lançado para se impor como uma mentirosa terceira solução entre o capitalismo e o comunismo [56]. E a autogestão socialista era a meta internacional a serviço da qual o PS francês prometera instrumentalizar o governo, as riquezas, o prestígio, o rayonnement (ou seja, a irradiação) mundial da França [57]. Era, portanto, a ave de rapina mais recente saída dos antros do comunismo. E era também a tentativa de conquista mais falaciosa, mais soez, mais ágil, mais reluzente que a propaganda comunista havia imaginado. Aí veio a campanha da Mensagem [58]. Sem camuflagem, o imperialismo comunista não conseguiria caminhar no mundo. A opinião pública francesa, fortemente alertada, percebeu que a autogestão não era senão camuflagem e a rejeitou nas eleições cantonais de março de 1982. Por sua vez, a rejeição da camuflagem autogestionária na própria terra que lhe servia de foco de irradiação enregelou e pôs de sobreaviso todas as áreas da opinião mundial que, logo depois dos êxitos socialo-comunistas de 81, vinham se deixando contaminar por ela. Essa contaminação caminhava despreocupada. O primeiro documento com publicidade internacional que contra ela se ergueu — a Mensagem das TFPs — saiu a lume quando ainda os tenores e as primadonas de esquerda entoavam, por toda parte, a ária da autogestão. Eles — e elas — diminuíram um tanto o volume de voz porque, mais sutis do que Mitterrand e sua equipe, sentiram que no público havia gente que não os ia acompanhando. Com o insucesso e o brado de alerta na França, a autogestão ficou congelada no mundo* [59]. * Ressentindo-se fortemente dos efeitos da Mensagem, a autogestão não pôde evitar um processo de decadência. Onze anos depois (1992), a ministra socialista da Habitação, Marie-Noèlle Lienemann, declarava: “O Partido Socialista acabou. Nós temos que criar uma nova estrutura, um novo partido” (Folha de S. Paulo, 22/10/92). Essas declarações equivaliam a um verdadeiro atestado de óbito do sonho autogestionário dos socialistas franceses, confirmado pela substituição do radical programa de 1981 pelo anódino Novos Horizontes, adotado pelo Congresso do PS francês de 15/12/91.. Neste último se lia: “Já não se trata, como ocorria no que concerne à antiquada autogestão [sic!], de eliminar os empresários para substituí-los por dirigentes designados pelo Estado ou eleitos pela base [...] Os representantes dos assalariados não devem substituir os chefes na direção da empresa” (cfr. Michel Charzat, Un Nouvel Horizon, pp. 94, 96 e 97). Era o socialismo autogestionário se declarando decrépito pelos seus próprios dirigentes e partidários. Chegamos a 2014 e vemos Manuel Valls, primeiro-ministro socialista do governo Hollande, defender uma mudança de nome do partido, para retirar o termo “socialista” (cfr. Clóvis Rossi, in Folha de S. Paulo, 3/4/2014). É preciso ter em vista que, em face da anterior decadência do Partido Comunista francês, que se tornou um pequeno partido de quinta categoria, a grande esperança das esquerdas francesas era o PS. Manuel Valls posteriormente foi ainda mais longe, e lamentou o estado terminal da esquerda francesa, da qual o PS era o grande representante. Em pronunciamento feito na reunião do Conselho Nacional do Partido Socialista, em 14 de junho de 2014, afirmou ele que, diante das preferências que vêm sendo manifestadas pelos eleitores, nós poderíamos chegar “a uma era na qual a esquerda pode também desaparecer [...] sim, a esquerda pode morrer [...] Nós sentimos que chegamos ao fim de algo, ao fim talvez mesmo de um ciclo histórico para o nosso Partido [...] A esquerda nunca esteve tão fraca” (cfr. Journal du Dimanche, 14/6/2014; La Croix, 23/6/2014). O golpe dado pela Mensagem de Dr. Plinio no socialismo autogestionário, no momento em que o PS se encontrava no auge de seu prestígio político, teve um papel chave na derrocada da influência socialista e das esquerdas em geral. Capítulo IV“As CEBs ... das quais muito se fala, pouco se conhece — A TFP as descreve como são” (1982) |
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| Campanha da TFP no Viaduto do Chá, na capital paulista, de difusão da obra "As CEBs... das quais muito se fala, pouco se conhece - A TFP as descreve como são" |
Foi assim que os irmãos Gustavo Antonio Solimeo e Luiz Sérgio Solimeo, e eu, escrevemos o livro As CEBs... das quais muito se fala, pouco se conhece - A TFP as descreve como são*.
* O livro teve seis edições, num total de 72 mil exemplares, além dos 180 mil exemplares de uma versão popular que condensava as denúncias em forma de revista em quadrinhos.
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Versão popular do livro das CEB's que condensava as denúncias em forma de revista em quadrinhos [faça o download do livro -18 MB - clicando sobre a foto] |
Na primeira parte, mostro como as CEBs são o instrumento da esquerda católica para semear o descontentamento na população (especialmente entre os trabalhadores manuais), transformar em seguida o descontentamento em agitação e, através dessa agitação, impor aos Poderes Públicos a tríplice Reforma: Agrária, Urbana e Empresarial.
A Parte II da obra informa o público brasileiro sobre a realidade das CEBs: a doutrina disseminada por estas, sua organização, seus métodos para recrutamento de aderentes e para a ação dos mesmos aderentes sobre o conjunto do corpo social.
Para este efeito, os autores dessa parte da obra, os irmãos Gustavo e Luiz, foram colher os dados, por assim dizer, dos próprios lábios daquelas organizações, isto é, dos escritos em que elas se autodefinem para seus aderentes e para o público.
Completam as informações assim coligidas, outras notícias de jornais e revistas inteiramente insuspeitos de distorcer os fatos em detrimento das CEBs.
A partir de agosto de 1982, sócios e cooperadores da TFP encarregaram-se da difusão da obra por todo o Brasil: 1.510 cidades foram visitadas pelas caravanas de propagandistas da TFP [68].
Denunciadas as CEBs, houve uma erosão qualquer por onde elas [69] ficaram como uma bolha que havia vazado e diminuíra de volume [70].
É fora de dúvida que o livro, para quem sabe ver a profundidade das coisas (porque na superfície nada disso é dito assim), marcou uma situação em que a expansão das CEBs — que já era difícil — se tornou muito mais difícil em certos ambientes.
E toda organização que encontra dificuldades na sua expansão, por causa disso mesmo fica exposta a uma crise interna de desânimo. A crise de desânimo traz consigo a dúvida. E a dúvida provoca a deserção.
Com isto, a própria Teologia da Libertação ficou abalada e muito ameaçada no Brasil [71].
Muita gente ficou vendo, na ocasião, que mais uma vez a TFP havia atacado o que ninguém ousava atacar. Havia dito o que ninguém ousava dizer. E deteve o passo de um movimento que, sem isso, continuaria devastando aquilo que o Brasil tinha de mais substancial, de mais precioso, o por onde nosso País é ele mesmo, que é seu caráter católico, apostólico, romano [72].
Não há o que baste para encarecer o papel decisivo do livro sobre as CEBs, que imunizou largos setores da população contra esse movimento. O livro fez com as CEBs o que a pastoral de Dom Mayer havia feito em relação aos desvios dos Cursilhos, e o Em Defesa em relação à Ação Católica: alfinete no balão de borracha* [73].
* Depois disso, a esquerda católica ainda tentou reanimar as CEBs, realizando encontros periódicos, à base de empolgamentos artificiais. Mas nada pegou. O balão estava furado. O mais recente encontro de que tenhamos notícia foi realizado em Juazeiro do Norte (de 7 a 11 de janeiro de 2014), com grande aparato midiático. Falava-se em ressurreição das CEBs. No dia 7, a CNBB anunciava exultante em seu site: “Pela primeira vez em sua história, um Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) recebe uma mensagem de um papa. No dia 17 de dezembro, o papa Francisco enviou uma carta aos participantes do 13º Intereclesial das CEBs, que tem início hoje à noite, em Juazeiro do Norte”. Terminado o Encontro, parece que os ressurrectos voltaram para o túmulo. Não se ouviu mais falar das CEBs. O tema é analisado em artigo publicado em Catolicismo (abril/2014) e no artigo Um festival de marxismo, o Congresso das CEBs (site do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira).
Eles haviam feito das CEBs o cavalo de corrida deles. E nós furamos um dos olhos desse cavalo de corrida... [74]
Em vista do sucesso da denúncia, não era de espantar que viesse por cima de nós um contragolpe.
E este veio através de um bombástico noticiário publicado na imprensa paulista e carioca sobre o suposto envolvimento da TFP na impressão de um número falso do semanário oficial arquidiocesano O São Paulo.
Tal envolvimento absolutamente não existia. E era até inverossímil, segundo teve o bom senso de declarar, interrogado pela imprensa sobre a matéria, o Emmo. Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns: “Não quero culpar ninguém sem provas. A TFP sempre teve a coragem de apresentar seus documentos assinados e, por isso, eu sempre respeitei essa organização” (Folha de S. Paulo, 25/8/82).
Diante dessa declaração, tudo parecia se dissipar.
Mas a malevolência, como as vespas, melhor do que andar, sabe voar... [75]
Imaginem meu pasmo lendo em dois números da Folha as desinibidas declarações em que o Sr. José Carlos Dias (ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz arquidiocesana de São Paulo) afirmava ter pistas que bem poderiam conduzir à demonstração de que as falsificações de O São Paulo e de outros textos emanados da esquerda católica poderiam vir da TFP!*
* Essas declarações temerárias do ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo saíram na Folha de S. Paulo dos dias 8 e 9 do setembro de 1982.
Era preciso estar inteiramente alheio ao que significa, ao que tem de si como peso natural na vida das idéias, das correntes de pensamento e de ação que imprimem rumo a um país, uma impugnação, uma documentação, um livro, para imaginar que uma organização, a qual vinha fazendo à esquerda católica uma oposição alta, compacta e extensa como uma serrania, lucrasse o quer que seja em esborrifar contra essa mesma esquerda algumas gotas de água suja ou, em outros termos, um jornalzinho e uns folhetos falsificados.
Para quem possuísse uma noção lúcida e serena da importância cultural do livro, como da importância real da cultura nas esferas pensantes de um povo, a hipótese cairia por terra a priori.
O Sr. José Carlos Dias não entendia as coisas assim. E ei-lo a fazer tábula rasa dessa impossibilidade absoluta, e a acompanhar sequioso as investigações policiais na Artpress, gráfica pertencente ao Sr. Fausto Borsato, sócio da TFP que havia feito a impressão do livro sobre as CEBs.
Segundo os próprios jornais, verificou-se que a Artpress não tinha máquinas capazes de imprimir O São Paulo autêntico, nem o falsificado.
Insensível a tudo isso, o Sr. José Carlos Dias persistia nas suas suspeitas.
E foi esse mesmo número falsificado que ele e o Sr. Bispo Dom Luciano Mendes foram levar — prestigiados por aparatosa repercussão publicitária — ao Sr. ministro da Justiça, Dr. Abi Ackel, e por meio deste, ao Sr. Presidente da República, general João Batista Figueiredo*.
* Dias depois, os jornais estampam a notícia de que as investigações acabaram por levar à descoberta, em Belo Horizonte, da gráfica onde havia sido impresso o número falso de O São Paulo. A declaração prestada à Folha (de 18/9/82) pelo Delegado de Polícia, Dr. Carlos Antonio Sequeira, de que nada havia sido apurado contra a TFP, no tocante a esta encerrava definitivamente o caso, e punha termo às especulações malévolas. E os veiculadores das suspeitas injuriosas e estapafúrdias caíram no mais completo descrédito junto à opinião pública.
* * *
Mas esta minha conversa não era com o Sr. José Carlos Dias. Era com o público que ele assim procurava intoxicar contra a TFP, no momento preciso em que esta lançava, acerca das Comunidades Eclesiais de Base, um verdadeiro livro-bomba.
Então escrevi um artigo para a Folha de S. Paulo, refutando essas acusações.
Nesse artigo, a que dei o título de Suspeita estapafúrdia e juízo temerário (15/9/82), eu perguntava se o Sr. José Carlos Dias saberia o que era o pecado de juízo temerário.
E afirmei a ele que esse pecado tinha uma agravante enorme quando o juízo temerário era divulgado por duas vezes no jornal de maior circulação de São Paulo, isto é, precisamente na cidade de maior população do Brasil.
Era o que eu, como presidente do Conselho Nacional da TFP, precisava dizer [76].
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Tropas argentinas desembarcando nas Malvinas |
Paralelamente à agitação das CEBs, um acontecimento sul-americano que me encheu de preocupação foi a guerra das Malvinas*.
* Esta guerra iniciou-se no dia 2 de abril de 1982, quando a Argentina, em operação militar de surpresa, invadiu o Arquipélago das Malvinas, de lá expulsando a guarnição inglesa. A Inglaterra reagiu, mobilizando a Real Armada, iniciando-se assim o conflito nos mares do Sul.
Enquanto pendência estritamente argentino-inglesa, não nos tocava absolutamente intervir.
Mas em determinado momento ficou claro para mim que a Rússia comunista havia posto a mão, apoiando um dos lados. Então me senti obrigado a tomar posição, pois ficava patente que a Rússia tinha um plano, um proveito a tirar. E nós não queríamos que ela tirasse esse proveito [77].
A presença de uma força naval da Rússia no Atlântico Sul - tão distante de seus mares árticos - e precisamente naquela hora crítica, punha em xeque aqueles dois países (a Argentina e a Inglaterra), e não só eles como também a toda a América do Sul.
Essa força naval soviética seria provavelmente solicitada pela Argentina a prestar ajuda contra os ingleses*.
* Dr. Plinio, na época, ficou especialmente preocupado diante de notícias como esta, publicada nos jornais El Día, de Montevidéu e El Universal, de Caracas do dia 6/4/82:
“A superioridade militar inglesa pode, eventualmente, obrigar os argentinos a solicitar ajuda à URSS. Ou, melhor dito, a aceitá-la, pois esta já foi oferecida através da embaixada russa, enquanto submarinos soviéticos se mantêm à espera no limite das águas argentinas, pondo em evidência a rapidez com que essa ajuda possa chegar”.
Se tal ocorresse, os soviéticos formulariam inevitavelmente suas condições: por exemplo, um condomínio russo com a Argentina nas Malvinas e a participação das esquerdas argentinas no poder central da nação [78].
* * *
Essa simbólica presença naval russa, a despertar a esperança de um apoio pelo menos diplomático e econômico de Moscou e de seus satélites à Argentina, o consenso geral não teve dúvida em a relacionar com as sucessivas visitas de embaixadores da Rússia e da China à chancelaria argentina, e uma ostensiva aproximação, diretamente em virtude da ocupação das Ilhas, entre o governo até então militantemente anticomunista do general Galtieri e as esquerdas argentinas de toda sorte [79].
De qualquer um se poderia esperar que aceitasse esse apoio, menos precisamente do general Galtieri, o qual, desde empossado, começara uma ativa repressão anticomunista.
Mas ei-lo que agora aparecia de braços dados com o embaixador comunista e das nações-satélites, em visitas de cordialidade. Ao mesmo tempo recebia afagos e acenos do governo de Pequim. E reabria para os terroristas montoneros exilados o caminho de volta, além de se pôr a cooperar com tudo quanto era peronista e esquerdista na Argentina [80].
Esses grupelhos de extrema esquerda argentinos, até então perseguidos e contidos, começaram a se mostrar em conchavos na Casa Rosada e em missões exteriores de relevo* [81].
* Muitos anos depois, matéria publicada em O Estado de S. Paulo de 1° de abril de 2012, do correspondente em Buenos Aires, Ariel Palacios, revelou que era plano da junta militar argentina afundar navios ingleses em Gibraltar, sem reivindicar o ataque. Batizada de “Operação Algeciras” (Algeciras é uma cidade espanhola próxima a Gibraltar), ela seria realizada por um grupo de ex-guerrilheiros montoneros e por militares argentinos, que viajaram à Espanha para este fim. Os explosivos foram até Madri via mala diplomática, sendo depois transportados de carro pelo grupo argentino até aquela cidade do sul da Espanha. Mas a polícia espanhola desconfiou das pessoas, descobriu os explosivos, arrestou-os, e a missão fracassou.
Tudo isso reforçava a minha idéia de que aquela história das Malvinas era um jogo para facilitar a entrada de tropas comunistas russas no continente* [82].
* Onze anos mais tarde, o próprio Fidel Castro viria confirmar que até Cuba tinha oferecido tropas ao governo argentino. Em entrevista ao jornal Ambito Financiero, de Buenos Aires (26/7/93), ele disse “que seu país ofereceu enviar tropas em apoio à Argentina durante a guerra das Malvinas, em 1982, e sugeriu então que todos os países que quisessem ajudar, que formassem um batalhão, ‘uma coalizão de latino-americanos’. Explicou que ‘nós lhes sugerimos que não se rendessem, que fizessem uma coalizão latino-americana, que mantivessem a guerra’” (apud Catolicismo n° 520, abril de 1994).
Também o presidente Kadafi — que capitaneava e apoiava o terrorismo mundial — prestou substancial ajuda na ocasião, embarcando secretamente para a Argentina, durante o conflito, armas num valor superior a 70 milhões de libras esterlinas, incluindo 120 mísseis soviéticos SAM-7. A informação é do jornal The Sunday Times (13/5/84), que ouviu o embaixador líbio em Buenos Aires.
Segundo aquele embaixador, “o coronel Kadafi ofereceu ajuda incondicional e ilimitada à Argentina”, acrescentando que “estávamos nos preparando para abastecer com armas a Argentina enquanto durasse o conflito” (jornal cit.).
O jornal O Estado de S. Paulo publicou, em sua edição de 12/11/2006, documentos secretos liberados pelo governo brasileiro e relativos à Guerra das Malvinas.
Neles revela-se que ”o governo brasileiro monitorou com preocupação a ajuda militar soviética prestada à Argentina em 1982”. Os referidos documentos falavam de abastecimento de armas e de urânio enriquecido à Argentina e assinalavam a ”intranquilidade das autoridades brasileiras com a aproximação da Argentina com os países de regime comunista ou próximos politicamente da União Soviética, especialmente por causa do abastecimento de armas, disponibilidade de bases aéreas e entrega de urânio enriquecido”.
O periódico paulista informou ainda que os russos tentavam disfarçar a origem das armas soviéticas por meio do fornecimento através de outros países como a Líbia (cfr. Catolicismo n° 523, julho de 2007).
E o número dois da KGB, general Nikolai Sergeievitch Leonov, em entrevista ao repórter Igor Gielow, da Folha de S. Paulo, embora procurando camuflar o vulto total da participação soviética no apoio aos movimentos insurrecionais comunistas latino-americanos, a certa altura afirmou: “estávamos dispostos a ir muito longe, muito mais do que se pensa” (cfr. FolhaOnline, 13/1/2008).
Se as tropas russas desembarcassem na Argentina, sob pretexto de colaborar em sua defesa, quem obteria que a abandonassem?
Para efetivar agora seus direitos às Malvinas, valia a pena a Argentina pagar tão imenso preço político? Como católico, como brasileiro, como sul-americano, eu só podia responder: não valia a pena [83].
O que nós, da TFP, desejávamos era a expulsão dos russos do cenário sul-americano. E o ponto de nossa luta foi este.
Não tínhamos o direito de ignorar que, perto de nós, estavam os navios de guerra dessa neta maldita de todas as Revoluções, que era a seita comunista instalada na Rússia. E este foi o pensamento central do comunicado que combinamos com a TFP argentina, bem como de toda a nossa conduta ao longo desses acontecimentos.
Essa conduta consistiu em, por cima de direitos nacionais legítimos, fazer prevalecer o direito de Nosso Senhor Jesus Cristo de ser Rei do mundo inteiro, e que os inimigos de Deus fossem derrotados. Não havia discussão possível sobre este ponto [84].
Em conversa com os dirigentes da TFP argentina, ficou acertado que era indispensável que ela tomasse uma posição [85] nessa disputa diplomática entre Buenos Aires e Londres acerca da soberania sobre as Ilhas Malvinas [86].
E ela a tomou através do documento que La Nación publicou com um belo destaque no dia 13 de abril daquele ano [87].
Esse documento teve uma repercussão excelente na Argentina. E mostrava muito acertadamente qual era o jogo que estava sendo feito [88]. E deixava claro que, se a Argentina viesse a se aliar à Rússia, ou a aceitar o apoio militar dela, ela iria perder muito mais do que ganhar [89], pois a sua independência no território continental seria posta em risco, em troca de uma reconquista de alguns territórios insulares.
Notem bem que a TFP platina afirmava que a soberania era um direito da Argentina. Mas em seu manifesto ela ressaltava que o pior inimigo não era o que estava ocupando as Malvinas, mas o que poderia ocupar o país inteiro, ou seja, a Rússia [90]. E que se a Rússia interviesse do lado argentino, era quase certo que os Estados Unidos interviriam do lado inglês, desencadeando-se assim o jogo de todas as alianças.
A III Guerra Mundial ter-se-ia desatado por causa das Ilhas Malvinas. E a Argentina formando parte do bloco soviético! [91]
A leitura dos jornais tornava claro que o agravamento crescente da crise anglo-argentina poderia colocar nosso governo em circunstâncias de tomar atitudes mais e mais próximas de um envolvimento [92].
Havia o empenho da Rússia soviética em promover várias guerras simultâneas, que lançassem no caos o bloco populacional católico maior do mundo [93].
O que por sua vez traria o grave risco de um reacender do terrorismo, de guerrilhas, agitações e convulsões em todos os lugares do continente sul-americano em que havia comunistas [94].
Além disso, eu havia recebido um telefonema de pessoas de nosso Bureau em Washington, dizendo-me que haviam conversado com personalidades norte-americanas de importância e estas achavam que os Estados Unidos iriam apoiar a Inglaterra, e que uma ação bélica era inadiável.
* * *
Outra série de dados também acabava de me chegar de nossos irmãos da Venezuela, que apresentavam uma situação com a qual absolutamente eu não estava familiarizado.
Eles me diziam que a Guiana britânica era independente, mas fazia parte da Commonwealth. E há nessa Guiana um pedaço de território que a Venezuela reclama para si.
O Presidente da Venezuela na época, Herrera Campins, se declarara peremptoriamente favorável à Argentina e contrário à Inglaterra, deixando entrever que ele queria invadir a Guiana inglesa logo que pudesse.
De outro lado, a Colômbia tinha uma questão territorial com a Venezuela, a respeito de uma faixa petrolífera muito rica. E a Colômbia sempre se considerou dona dessa faixa, sustentando que a Venezuela a teria ocupado indevidamente. E a Colômbia havia se declarado, por sua vez, muito contrária à Argentina e favorável à Inglaterra.
Quer dizer, na eventualidade de a Inglaterra vacilar nas Malvinas, a Venezuela poderia querer atacar a Guiana. Mas a Venezuela tinha o problema de que ela poderia ser atacada pela Colômbia.
Obviamente a Inglaterra conhecia todas essas reclamações da Venezuela contra a Guiana, e sabia bem que, se ela cedesse nos mares do Sul, enfrentaria outro obstáculo no Norte. E ela corria o risco de não sofrer apenas isso, porque tinha Gibraltar que é reclamada pelos espanhóis.
As Malvinas eram então, para a Inglaterra, a chave que abriria ou fecharia a possibilidade de todos esses outros ataques. E devia estar fazendo insistências junto aos Estados Unidos para ser sustentada.
Havia ainda uma roldana contínua de reivindicações entre nações hispano-americanas: o Equador reivindicava terras que o Peru ocupa. A Bolívia tinha uma questão com o Chile. Na Argentina havia uma disputa das Ilhas Beagle também com o Chile.
De proche en proche todas essas reivindicações podiam pegar fogo [95]. Uma erisipela de guerras poderia se alastrar pela América do Sul, com as corolárias crises econômicas e revoluções sociais [96].
No fundo ficava aberta a já referida possibilidade de uma vietnamização da América do Sul.
Vendo tudo isso, compreendia-se o caráter mundial dessa jogada que se resolvia nos mares da Argentina. Era a política mundial transplantando seu centro para a América do Sul.
Eu via também que o Brasil, com tantas fronteiras a sustentar de tantos lados, dificilmente ficaria à margem desse conflito.
Ainda que ficasse diplomaticamente à margem, todos os esquerdistas brasileiros iam começar a torcer pelo lado comunista dos outros países, e todos os anti-esquerdistas iriam torcer pelo lado anticomunista. E o Brasil ficaria dividido.
Eu percebia bem que uma palavra da TFP, jogada no momento certo e do modo certo, poderia decidir um futuro enorme [97].
Foi então que enviei uma carta ao Presidente Figueiredo, discorrendo sobre todas essas razões.
Assim, pouco tempo depois que saiu o pronunciamento argentino, passei um telex ao presidente Figueiredo e mandei texto análogo ao Ministro das Relações Exteriores, que era então o Sr. Saraiva Guerreiro, pedindo a ambos que, no balizamento de nossa atuação política, tomassem em consideração as preocupações da TFP argentina com a entrada da Rússia no conflito [98].
Nessa carta, eu dizia que uma experiência dolorosa mostra que quem quisesse resistir à agressão do superpoder soviético teria de recorrer ao superpoder norte-americano. E seria a vietnamização do Brasil e da América espanhola que teria começado [99].
A carta a Figueiredo foi publicada na Folha em primeira mão, e depois em mais 13 jornais das principais capitais de Estado*.
* Na Folha de S. Paulo, essa carta saiu no dia 7/5/82. Poucos dias depois (dia 11), o presidente Figueiredo viajou para os Estados Unidos, mantendo contato com o Presidente Reagan e com o secretário de Estado Alexander Haig.
Segundo um documento secreto do Conselho de Segurança Nacional da época, a que o matutino O Estado de S. Paulo teve acesso anos depois, Haig e Figueiredo falaram abertamente sobre o risco de a União Soviética aproveitar-se do conflito para aumentar sua margem de influência em relação aos argentinos. E o Presidente Figueiredo afirmou, num desses encontros, que existia o risco de que o acirramento do conflito fizesse com que a Argentina pudesse virar o “Vietnã da América Latina” (cfr. matéria de Marcelo de Moraes / Brasília, in OESP, edição de 3/4/2012).
A TFP lançou em seguida uma campanha de rua distribuindo um volante que divulgava para o Brasil inteiro essa carta.
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Sócios e cooperadores da TFP brasileira percorrem as ruas das principais capitais para anunciar ao público, por meio de slogans e cartazes, a publicação da carta ao Pres. Figueiredo [acima, em pleno Viaduto do Chá, em São Paulo]. Na hora do almoço já não se encontram mais nas bancas os jornais que o estamparam em suas páginas. |
E assim os grossos carrilhões da TFP começaram a tocar [100].
Estive pessoalmente em alguns lugares dessa campanha em São Paulo. E pude notar a atitude das pessoas em relação ao nosso pronunciamento. A impressão que me ficou é que estava tendo um êxito espetacular.
Sintoma disso foi que, em São Paulo, a tiragem da Folha de S. Paulo com o nosso manifesto se esgotou rapidamente, até a hora do almoço, em todas as bancas de jornais. O que significava que a publicação havia impressionado muita gente [101].
Na tensão a propósito das Malvinas, o que a mim mais me afetava como católico, como brasileiro e como homem de tradição, não era a disputa entre a Inglaterra e a Argentina. Mas a constatação da lamentável fragilidade de todo o Ocidente face ao imperialismo soviético.
Pois a simples presença de uma força naval da Rússia no Atlântico Sul, naquele momento crítico, punha em xeque, simultaneamente, a grande e querida potência sul-americana que é a Argentina, quanto a ilustre e provecta potência européia e mundial que é a Inglaterra. Isto a prazo imediato.
A prazo mediato, poderia ter convulsionado toda a América do Sul, inclusive meu Brasil, e lançado à guerra as superpotências norte-americana e russa.
Era a esse estado de debilidade que havia chegado o Ocidente, por obra do calamitoso governo Carter e da dupla détente norte-americana e vaticana em relação a Moscou.
O verdadeiro conteúdo dessas duas détentes, da Casa Branca e do Vaticano, foi o afrouxamento. E os soviéticos não se “distenderam”.
Ora, um afrouxamento unilateral só podia redundar na derrocada dos afrouxados. E este nos conduziu ao que se passou a propósito da força naval russa perto das Malvinas.
Minhas simpatias não se deviam voltar, pois, para a Inglaterra ou para a Argentina, mas simultaneamente rumo à Inglaterra e à Argentina contra a Rússia soviética.
Paradoxo? De nenhum modo.
De um lado, não se podia pedir à Argentina que renunciasse às suas tradicionais reivindicações.
De outro, pense-se o que se pensar do valor das alegações inglesas em favor dos direitos da Commonwealth a essa e outras possessões, uma coisa não se podia pedir ao governo inglês: era que naquele momento recuasse ante tais reivindicações.
Também não se podia pedir à Argentina, à Venezuela ou à Espanha que renunciassem a suas tradicionais reivindicações.
Mas era impossível não discutir a oportunidade da ocupação militar argentina naquele momento. Porque uma força naval soviética se encontrava na zona. E isto punha em risco grave a própria soberania da Argentina no seu território continental [102].
A Rússia evidentemente teria fornecido tropas para desembarcar na Argentina. E teria tomado comodamente as ilhas Malvinas, tanto mais que contaria com o apoio logístico das Forças Armadas argentinas à vontade. Mas os russos não sairiam mais.
Eles imporiam à Argentina um governo comunistóide. E isso teria agravado prodigiosamente a situação da América do Sul inteira [103].
Se a opinião pública argentina, esclarecida por dois lúcidos e ágeis comunicados da TFP platina, não tivesse rejeitado bravamente a colaboração comunista, o módico cupinzeiro comunista existente em terras platinas teria intumescido desmedidamente, tentando transformar num gigantesco cupim toda a nação [104].
Os comunicados tiveram portanto a intenção de cortar o caminho [105] e torpedear a possibilidade de uma ajuda russa* [106].
* Na já citada entrevista do alto-funcionário da KGB, general Nikolai Sergeievitch Leonov à Folha Online, este afirma:
“Eles, os argentinos, precisavam de mísseis terra-ar, ar-mar e mar-mar, mas não se atreveram a comprar armamento soviético. Então tentamos fornecer imagens de satélite da movimentação da Força Expedicionária Britânica no Atlântico, mas acho que eles desconfiaram dos dados que nós enviamos e os contatos morreram”. E acrescentou: “Havia um fator ideológico, eles eram uma ditadura anticomunista, não poderiam introduzir armas soviéticas no cenário de guerra”.
E o repórter da Folha acrescentou o seguinte comentário: “Efetivamente, à época da guerra os britânicos localizaram barcos e submarinos soviéticos perto das águas do conflito, e bastou essa insinuação de apoio, que nada teve a ver com as negociações secretas em Buenos Aires, para que grupos como a Tradição, Família e Propriedade argentinos fossem às ruas para criticar o até então popular governo em guerra” (cfr. Folha Online, 13/1/2008, cit.).
* * *
Se isso parou ou não pela voz da TFP argentina, se encontrou ou não obstáculos no pronunciamento e na publicidade feita pela TFP brasileira e pelas outras TFPs, pelo menos sofreu grave dano. Não se pode negar [107].
A Rússia saiu do episódio na postura de um batedor de carteira apanhado com a mão no bolso da vítima. Isto é, em pleno ato de intervir, por meio de pressões internas e externas, e movida por seu expansionismo ideológico, em uma nação sul-americana.
Assim se evitou que os “cupinzeiros” comunistas se intumescessem perigosamente em toda a América do Sul [108].

Caiu em 15 de março de 1985 o regime militar. A Abertura esteve prestes a levar ao poder o Presidente eleito, Tancredo Neves. A morte deste franqueou a suprema magistratura ao seu companheiro de chapa, o Vice-Presidente José Sarney*.
* Este tomou posse no dia 15 de março de 1985.
Naqueles dias, a tempestade agro-reformista irrompia e se estendia por todo o País [109].
* * *
Já em maio, o Presidente Sarney apresentou para debate o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária, que ficou conhecido como o PNRA. Era baseado no Estatuto da Terra.
Ninguém duvidava de que iríamos intervir. Nossa posição estava mais do que definida nessa matéria. Não éramos oposicionistas do Governo, pois não tínhamos nada contra ele. Mas na medida em que o Governo se mostrava a favor da Reforma Agrária de cunho socialista e confiscatório, neste ponto tínhamos que estar num desacordo radical com ele. Aliás, o Governo estava farto de saber disso [110].
A CNBB hipotecou público apoio ao PNRA. Os jornais disseram largamente que o Presidente Sarney estava em íntima conexão com a CNBB [111].
O pacto reformista entre o governo e a CNBB, selou-o a nomeação para o recém-criado Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD), de uma figura presumivelmente conhecida nos meios agro-reformistas, chegada às CPTs e às CEBs, mas perfeitamente desconhecida do grande público, o Sr. Nelson Ribeiro.
A este não faltaram operosidade, agilidade e garra. Febrilmente desejoso de efetuar o quanto antes a aplicação integral do Estatuto da Terra e do PNRA, o novo titular desenvolveu contra a estrutura agrária vigente, toda a força de impacto de que dispunha.
Arrojou-se a uma série de empreendimentos que chocaram a tal ponto a classe rural e a opinião pública em geral que, quando sobreveio em 2 de julho de 1985 o decreto declarando prioritária, para fins de reforma agrária, toda a área do município de Londrina, capital agrícola próspera do Estado do Paraná, o Presidente Sarney não só sentiu a necessidade política de revogar imediatamente o decreto delirante, como ainda se viu na contingência de voar a Londrina com um séquito luzidio, do qual faziam parte nada menos que quatro ministros — entre eles o Sr. Nelson Ribeiro — tudo para recitar o “mea culpa” do governo ante o mundo agrícola desnorteado e alarmado.
Mais uma vez estávamos diante do desconcerto geral do País, e especialmente de tantos lavradores que não sabiam para onde voltar-se [112].
Então, clamorosamente reclamado pelas circunstâncias em que vinha afundando o País, tive de redigir, com o Master of Science em Economia Agrária pela Universidade de Berckeley (Califórnia), Carlos Patrício del Campo, o livro A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista [113], que fazia uma análise pormenorizada do PNRA, e apontava o seu caráter socialista e confiscatório, bem como do Estatuto da Terra [114].
A argumentação usada no livro demonstrava que a eventual aplicação da Reforma Agrária nos termos do Estatuto da Terra e do Plano Nacional de Reforma Agrária constituiria para o Brasil impressionante passo no caminho do socialismo.
O novo livro demonstrava também a grave inoportunidade dessa aplicação, em razão do natural nexo do agro-reformismo com aspectos da Teologia da Libertação, e portanto com a crise religiosa que assolava então o Brasil. Havia arrebentado aqui o caso Boff. E quando Frei Boff foi objeto de medidas da Santa Sé, Bispos brasileiros assinaram um documento oficial, declarando-se inconformes com as resoluções tomadas pela Santa Sé* [115].
* Com efeito, no dia 11 de março de 1985 saía a público a “Notificação” da Congregação da Doutrina da Fé, aprovada pelo Papa João Paulo II, sobre o livro Igreja, Carisma e Poder, do então Frei Leonardo Boff, dizendo que “as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza, que põem em perigo a sã doutrina da fé” (cfr. site do Vaticano). No mesmo ano, ele foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso”. 17 Arcebispos e Bispos brasileiros se declararam então expressamente "inconformes" com a medida. Mais tarde, Boff abandonou o sacerdócio e oficializou sua união com uma mulher divorciada, mãe de seis filhos.
O livro estava praticamente pronto, mas ainda não publicado, quando um fato marcante favoreceu a publicação. Desse fato vamos falar agora.
A divulgação do PNRA desencadeou uma chuva de críticas dos líderes mais em evidência das associações de produtores rurais, críticas essas que se mantiveram acesas mais ou menos por uma quinzena.
Porém se notou que, em seguida, elas amainavam, tendendo a pleitear que o governo pusesse de lado o PNRA, ou pelo menos o mitigasse, de forma a ajustá-lo ao Estatuto da Terra. Este, sim, deveria ser aplicado, pois se considerava que a Reforma Agrária nele estabelecida era justa e boa.
Se esta era a posição dos líderes das associações patronais, tal não era a dos proprietários em geral, conforme se manifestou no Congresso que reuniu em Brasília, nos dias 27 e 28 de junho, cerca de 4 mil agricultores e pecuaristas.
Uma oportuna intervenção do Eng.º Plinio Vidigal Xavier da Silveira mudou o rumo dos debates, e deu ocasião a que subisse à tona o descontentamento latente dos fazendeiros, não apenas com o PNRA, mas em relação ao próprio Estatuto da Terra* [116].
* O congresso fora convocado pela Confederação Nacional da Agricultura para os dias 27 e 28 de junho de 1985. Os cerca de 4 mil fazendeiros presentes estavam certos de que ali seriam defendidos os seus direitos ameaçados pelo PNRA.
Mas os discursos tocavam só de leve sobre esses pontos, e a sessão ia transcorrendo numa atmosfera mortiça e apagada. Por fim, a mesa passou a ler o documento final em que ela, embora rejeitando o PNRA, pleiteava absurdamente a aplicação do Estatuto da Terra, que era a substância do PNRA.
Nesse momento, Dr. Plinio Xavier tomou o microfone e disse: “Peço a palavra!” E então manifestou de modo veemente a sua oposição ao documento, dizendo com toda a firmeza que os fazendeiros estavam ali, não para aprovar o Estatuto da Terra, mas para lutar contra ele e o PNRA.
Aí o auditório pegou fogo! E explodiu em aclamações e aplausos entusiásticos, que cobriram inteiramente a voz da mesa, a qual se sentiu paralisada e surpresa diante de uma reação com a qual não contava.
A inconformidade latente dos agricultores tornou-se manifesta, patente e categórica: vários oradores tomaram a palavra, endossando Dr. Plinio Xavier da Silveira e declarando de modo veemente o seu repúdio ao agro-reformismo tanto do PNRA como do Estatuto da Terra. Nessas intervenções foram freqüentes as críticas à posição da CNBB, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e das CEBs, bem como à posição concessiva de certos proprietários.
No dia seguinte, a mesa apresentou outro documento que, embora não elogiasse mais o Estatuto da Terra, omitia de criticá-lo, em dissonância com o sentir da imensa maioria dos proprietários rurais presentes.
Mas a reação despertada pela intervenção de Dr. Plinio Xavier da Silveira sinalizou ao governo a profunda impopularidade da Reforma Agrária que a Nova República e a CNBB queriam levar a ferro e a fogo para a frente.
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Aspectos da intervenção de Dr. Plinio Xavier e reação do auditório após a mesma no congresso pela Confederação Nacional da Agricultura |
Tenho como certo que, se essa posição dos dirigentes rurais tivesse prevalecido, os proprietários iriam sentir no seu bolso a mão confiscadora do Estado. E aí seria tarde para a classe rural cobrar isso dos seus líderes, porque todos já teriam ido por água abaixo [117].
* * *
Na ocasião, sócios e cooperadores da TFP distribuíram aos assistentes um prospecto anunciando o próximo lançamento de A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, o novo livro da entidade em preparação.
De um lado e de outro, as posições estavam tomadas e a polêmica engajada, o que favoreceu a publicação do nosso livro [118].
Com freqüência, o PNRA alegava princípios de justiça para fundamentar o que, de sua parte, a TFP — em uníssono com milhões de brasileiros — não hesitava em qualificar de confisco agrário. E os mesmos princípios de justiça, ele os invocava também para denunciar como radicalmente inaceitável o regime fundiário constituído de grandes, médias e pequenas propriedades.
Ora, pelo contrário, milhões de brasileiros estavam persuadidos de que, em si mesmo, nada havia de injusto em tal forma de distribuição da terra, contanto que a propriedade privada — quaisquer que fossem as dimensões — cumpria dedicadamente sua função social.
Havia, instalado no Brasil, um desacordo fundamental e amplamente difundido sobre o conceito de justiça.
Exatamente o conceito de justiça, e suas aplicações práticas, que eram largamente empregados pela Teologia da Libertação.
Os adeptos da Teologia da Libertação faziam girar sobre uma concepção radicalmente igualitária de justiça, a parte mais importante de sua argumentação agro-reformista.
Essa justiça igualitária é oposta ao conceito cristão bimilenar, segundo o qual pensam os católicos tradicionais contrários à Reforma Agrária.
Levantando precisamente naquele momento a questão agrária, o governo não conseguiria evitar uma conexão entre o debate agro-reformista e o debate teológico-filosófico instalado nos ambientes católicos.
Envolvendo-se com uma questão de justiça, o governo laico se situaria assim no centro de uma controvérsia religiosa e filosófica candente.
No horizonte se ia delineando uma eventual crise religiosa.
A TFP alertava o governo para o fato básico de que o Brasil mediano, o Brasil sensato, o Brasil autêntico não queria nem o Estatuto da Terra, mero resíduo, em plena abertura, de um ato característico da era militar, promulgado às pressas e sob pressão, com o consenso de um Legislativo então inseguro e pouco influente.
Uma abertura que impusesse por força de uma lei de um governo forte, a 130 milhões de brasileiros, uma imensa Reforma Agrária que a grande maioria deles não queria — e isto sem tempo suficiente para que eles se informassem, opinassem e debatessem — tal abertura atentaria contra si mesma, pois deixaria de ser abertura [119].
A conduta do governo em matéria agro-reformista trazia para este a necessidade de mudar de estratégia.
Tal necessidade, imposta pela atitude tanto dos proprietários como dos trabalhadores do campo, teria obviamente por meta a reconquista, pelo governo, da popularidade que seu agro-reformismo lhe fizera perder em largos setores rurais, lhe abalara seriamente em outros, e lhe valera a desconfiança generalizada em todos os setores do País, quer no tocante à eficácia da reforma planejada, quer no concernente aos pendores socialistas — na melhor das hipóteses — do ministro Nelson Ribeiro.
Segundo a imagem do País até então apresentada pelo IV e V Poderes conjugados [ou seja, a mídia e a CNBB], as cidades e os campos de nosso território-continente estavam sempre mais imersos na miséria, “os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”, segundo os princípios da crítica marxista.
Em conseqüência, uma geral explosão de inconformidade estaria para estourar no País.
Essa explosão traria derramamentos de sangue generalizados, cujas principais vítimas seriam os proprietários, menos numerosos que os proletários, e portanto necessariamente inferiores à força bruta da imensa massa dos trabalhadores manuais.
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Aspecto da invasão da Fazenda Annoni |
Como exemplo, o “caso” característico da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, invadida em outubro de 1985. Nos estandartes dos invasores soprava o vento de certa Teologia da Libertação, a que deviam o apoio de tão grande parcela da CNBB.
Todos recomendavam aos fazendeiros uma política de concessões: “ceder para não perder”.
Em outros termos, fossem os produtores rurais cedendo lentamente, e conservariam por mais algum tempo a posse — sempre mais reduzida — dos respectivos bens. Pois estariam matando, aos poucos, a fome da fera que seria o polvo deste fim de século.
Se o primeiro avança sempre, e o segundo cede sempre, chegaria um dia em que o primeiro teria ganho tudo, e o segundo teria perdido tudo.
Em outros termos, o proletariado terá destruído o patronato, e estará implantada no Brasil uma organização sócio-econômica sem classes: precisamente a meta comunista.
Agitadores agro-reformistas reunidos por impulso de numerosos vigários, religiosas, e muitos núcleos de CEBs, há tempos vinham constituindo hordas de invasores, com o manifesto intuito de tornar a Reforma Agrária um fato consumado à margem da lei [120].
Eles procuravam justificar suas investidas tomando por base uma fundamentação doutrinária de aparência católica [121].
Como se fossem planejadas por uma só máquina central, as invasões de terras costumavam desenvolver-se em zona afetada pela agitação de católicos de esquerda, em geral intimamente ligados ao pároco ou ao Bispo.
Depois de algumas negociações (leia-se intimidações!) feitas com os proprietários, apoiadas, no mais das vezes, pelo vigário ou pelo Bispo, invadiam desinibidamente o bem alheio.
As “negociações” prosseguiam então — já agora lideradas pelo padre ou pelo Bispo — e o proprietário, ou abandonava o local para salvar a própria vida e a dos seus, ou capitulava desde logo, aceitando ser desapropriado por preço vil.
Não era tão raro o caso de que o proprietário fosse pura e simplesmente morto pelos “pobres” ocupantes. O que obrigaria a família a fugir sem compensações a breve prazo [122].
E já começavam a ecoar nas profundidades de nossos sertões os brados-slogans “pega fazendeiro” [123].
* * *
Nessas circunstâncias, jogavam um papel decisivo os homens de Igreja, que deveriam interferir criando uma questão de consciência para os agressores, que cometiam um enorme pecado ao apropriar-se dos bens alheios. Porque a propriedade privada está garantida pelos 7° e 10° Mandamentos da Lei de Deus: "Não roubarás" e "Não cobiçarás as coisas alheias".
Entretanto, os fatos indicavam que as manifestações de eclesiásticos - inclusive Bispos - criavam uma questão de consciência, não no espírito dos agressores, mas no espírito dos agredidos, procurando convencê-los de que a justiça, o espírito do Evangelho - numa palavra, Nosso Senhor Jesus Cristo - está ao lado do agressor. O agressor estaria fazendo justiça, e os proprietários não teriam os direitos que pensam ter [124].
Realizavam-se assim, em cerrada cadência, as invasões e as ocupações de terras, sob os acesos aplausos da CNBB, com o bafejo de quase todos os meios de comunicação social, e em presença dos sorrisos algum tanto embaraçados, mas visivelmente comprazidos, do Poder Executivo [125].
Uma das coisas que me chamavam a atenção era que, muitas e muitas vezes, os proprietários de terra reagiam a essas invasões com uma indecisão e uma ineficácia notáveis, por não estarem certos de seus direitos sobre a terra, e nem do direito que tinham de reagir pessoalmente contra os invasores [126].
Lembro-me de ter comentado com Dr. Plinio Xavier que os fazendeiros estavam com muito receio de defender suas fazendas esbulhadas e de sofrer por causa disso uma vindita que poderia ser eventualmente o cárcere.
O problema que provavelmente havia no espírito deles era: “Será que a lei penal não contém uma arapuca qualquer por onde, se nós reagirmos às invasões, vamos parar na cadeia?”
Por causa disso, não havia reação da parte deles [127].
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Nesse quadro, o que a TFP propôs?
Uma coisa que não era bem conhecida dos fazendeiros era o fato de que a lei lhes colocava nas mãos a possibilidade de se defenderem do esbulho de suas terras, sem derraparem para a ilegalidade.
O que eu desejava era, primeiro, que os proprietários soubessem disso. Segundo, que o Governo soubesse que eles sabiam. Terceiro, que os mentores da agitação rural também o soubessem. Quarto, que o Brasil inteiro - que não via isso claro - ficasse sabendo que isto era assim, para tirar base às explorações que a CNBB, a imprensa esquerdista e outras instituições de esquerda faziam nessa linha.
O instrumento para isso seria exatamente que juristas de renome nacional dessem pareceres que mostrassem que o fazendeiro, turbado ou esbulhado na posse de suas terras, tinha o direito de se defender até mesmo à mão armada, caso não fosse socorrido pelo Poder Público.
O ideal seria publicar esses pareceres na imprensa, rádio e TV, bem como notícias deles serem espalhadas pelas agências internacionais. Dessa difusão a TFP poderia se encarregar [128].
* * *
A TFP tomou então contato com alguns fazendeiros [129]. Um dos consulentes foi o Dr. Osmar Peres Caldeira, advogado e fazendeiro residente em Montes Claros (MG) [130].
Eles se cotizaram para a publicação de Pareceres de dois eminentes jurisconsultos brasileiros a respeito deste ponto concreto: uma vez que às portas de uma fazenda se aproximasse uma coluna de aventureiros pseudo-trabalhadores famintos que ali quisessem se instalar, qual era o direito que a lei conferia ao proprietário para reagir contra essas hordas? [131]
Aos jurisconsultos escolhidos sobravam saber e fama para responder com segurança às perguntas dos fazendeiros. Eram eles o Professor Silvio Rodrigues, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e o Professor Orlando Gomes, da Universidade Federal da Bahia.
Seus Pareceres, verdadeiras obras-primas pelo valor jurídico, pela clareza e pela força de sua argumentação, bem como pelo cunho firme e cristalino das conclusões a que chegaram, foram datados respectivamente de São Paulo e Salvador em outubro e novembro de 1985, respectivamente.
Demonstraram eles que, segundo o Código Civil (art. 502), o legítimo proprietário, desassistido da autoridade policial, tem o direito de defender-se, e às suas terras, contra o esbulho dos invasores e ocupantes agro-reformistas — o que pode fazer inclusive à mão armada quando necessário [132].
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Os pareceres de juristas eminentes - que garantem aos fazendeiros o uso da força em caso de invasão - foram publicados em 87 jornais de todo o País |
A partir de janeiro de 1986, a TFP deu a mais ampla divulgação aos Pareceres, fazendo-os publicar em 87 jornais de 76 cidades de 21 Estados [133].
A difusão desses Pareceres, acompanhada de exposições ou reuniões para fazendeiros e também para trabalhadores rurais manuais, realizadas por sócios ou cooperadores da TFP em 181 localidades, repercutiu amplamente no País.
E avivou nos proprietários a determinação de resistirem, dentro da lei [134]. Começaram a aparecer os casos em que proprietários inconformados, desassistidos pelas autoridades federais e estaduais, preparavam a resistência armada com seus próprios recursos [135].
Era de esperar que a publicação desses Pareceres fosse acolhida com aplauso geral. Pois outra não devia ser a atitude dos bons brasileiros diante de proprietários rurais que, postos em situação sumamente aflitiva, timbravam em defender seus direitos, mas só nos limites da lei.
Entretanto, larga parcela dos meios de comunicação social se esmerou em fazer o contrário.
Focalizando com luz desfavorável os fazendeiros que agissem segundo os Pareceres, puseram-se a clamar que a campanha da TFP propagava a violência nas vastidões do ager brasileiro.
Comentário absolutamente tão descabido como o de quem alegasse que os guardas de proteção postados nos edifícios bancários para a defesa das pessoas e bens ali presentes, constituíssem foco de violência nas cidades.
Violência! Obviamente há uma violência injusta: é a de quem ataca os direitos conferidos pela Lei de Deus e pelas dos homens. E há uma violência justa, a qual constitui um direito, e conforme o caso até um dever: é a dos que defendem seus próprios direitos, ou ajudam seu próximo a agir do mesmo modo quando atacado.
Vociferando indiscriminadamente contra qualquer violência, em notícias acerca de fazendeiros dispostos a defenderem seus direitos, tais órgãos de comunicação social apenas tinham palavras de simpatia e de encômio para os esbulhadores, mesmo quando usavam de ameaça ou de violência efetiva contra o proprietário rural.
Essa contradição só se explicava em função da máxima do comunista francês Proudhon: “A propriedade, eis o roubo”. Máxima esta que ecoa a seu modo em toda a literatura comunista, de Marx até nossos dias.
Mas a opinião pública não se deixou arrastar por essas vozes enganosas. E não houve quem — fora dos ambientes da esquerda católica, do PCB e do PC do B — tomasse a sério essas acusações. E era fácil perceber que, uma vez difundidos os Pareceres, os fazendeiros que agissem segundo eles teriam a compreensão decidida do Brasil inteiro.
E assim se evitou que hordas de agitadores dessem, por sua própria deliberação, como abolidos, dispositivos essenciais do Código Civil e do Código Penal. Pois se a estas hordas se reconhecesse esta exorbitante atribuição de revogar a lei, e de a substituir por outra estabelecendo precisamente o contrário, o Brasil teria soçobrado na pior das ditaduras, que é a do populacho criminoso, e dos enigmáticos revolucionários que o manipulavam detrás dos bastidores, nas grandes convulsões políticas e sociais, das quais foram sinistros paradigmas a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução comunista de 1917.
Como sempre, também essa propaganda, de tão ampla envergadura, foi levada a cabo pela TFP na maior ordem e na mais estrita conformidade com as leis humanas e divinas. O que valeu à entidade atestados de delegados, prefeitos e outras autoridades municipais, comprobatórios da conduta modelar dos sócios, cooperadores e correspondentes da TFP. Atestados estes que vieram juntar-se a outros análogos, gloriosos trunfos de anteriores campanhas, atingindo o total de 4.317 certificados do gênero.
Com expressiva simultaneidade, as invasões e ocupações foram caindo de número, a ponto de, em certo momento, parecerem cessadas!
Mas o declínio das invasões e das ocupações parece ter feito ver a nosso Episcopado — agro-reformista fogoso, desconto feito de raras e nobres exceções — que o povo não o acompanhava.
O fato é que gradualmente diminuiu o número das declarações e “façanhas” agro-reformistas aparatosas, e a CNBB pareceu calar-se quase por inteiro sobre o grande tema, até há pouco tão de sua predileção.
Deu-se isto porque a proximidade das eleições de 15 de novembro teria sugerido à CNBB concentrar-se na orientação do eleitorado acerca da Constituinte? [136].
Pouco depois de amainadas as invasões, li a notícia de que o povo brasileiro fora convocado para escolher uma Assembléia Nacional Constituinte, que funcionaria concomitantemente como Congresso nacional (Câmara e Senado) [137].
Uma vez chegado o período eleitoral, começou um estilo de propaganda, o mais lamentável possível [138]. A propaganda que os políticos faziam costumeiramente era da respectiva cara.
Era uma cara com bigodinho, sorrindo, ou outra cara com olhar wagneriano, como quem prometesse ao Brasil um futuro gigantesco. E daí para fora.
Eram caras, caras e caras; nomes, nomes e nomes... e só. Eles não apresentavam nenhum princípio, não davam nenhuma meta, não articulavam nenhum programa [139].
Lembro-me de ter visto, na campanha para a Constituinte, um desses cartazes de propaganda com a cara enorme de um homem, e apenas os dizeres: "Fulano de tal é federal" [140]. Mais nada. A cara dele era o único argumento para ser eleito [141].
O mandato popular para fazer a nova Constituição foi conferido, na maior parte dos casos, a cidadãos brasileiros acerca dos quais o eleitorado ignorava o que pensavam no tocante aos grandes problemas nacionais [142]. E isto concorreu gravemente para a inautenticidade daquele pleito [143].
O alheamento entre o povo e os candidatos, daí decorrente, era tão grande que foi impressionante o número de votos em branco ou nulos [144]. A classe política não tinha o entusiasmo de ninguém no Brasil [145].
* * *
A essa carência de representatividade congênita veio somar-se outra, decorrente do funcionamento tumultuado e anômalo da própria Constituinte, em que as inautenticidades se sucediam em cadeia.
O plenário era menos conservador do que o eleitorado. As comissões temáticas eram mais esquerdistas que o plenário. E a Comissão de Sistematização (que coordenava o trabalho preparado pelas comissões temáticas) apresentava a maior dose de concentração esquerdista da Constituinte.
E, assim, uma minoria esquerdista ativa, articulada, audaciosa ameaçava arrastar o País para rumos não desejados pela maioria da população [146], numa atmosfera de caos marcada pelo pipocar dos insultos, pelo estalido das taponas, e pelas querelas decorrentes das insuficiências dos prazos regimentais.
Os que me conhecem pessoalmente sabem que não sou “queixoeiro” nem pessimista. Mas não havia setor da vida nacional em que alguém não estremecesse na antevisão dessas reformas que abalavam tudo, desde a segurança e incolumidade do Poder Judiciário, que deveria ser intangível, até a integridade e a própria existência da família, ameaçada de deixar de vez de ser uma realidade, para ficar reduzida a mera ficção literária de mau gosto [147].
Impunha-se fazer um estudo que versasse ao mesmo tempo sobre a representatividade da Constituinte então eleita e sobre o Projeto de Constituição que ela estava elaborando.
O resultado desse estudo foi o livro Projeto de Constituição angustia o País, que concluí em outubro de 1987 [148], quando os trabalhos da Constituinte atingiam o seu clímax [149].
Após exaustivo trabalho de coleta e análise dos dados disponíveis, o estudo versava não só sobre a representatividade da Constituinte, como também sobre o Projeto de Constituição em elaboração, bem como o desfecho que se podia vislumbrar ante o eventual divórcio do novo texto constitucional em relação ao pensamento majoritário da Nação [150].
Mostro no livro que esse projeto de Constituição estava dando um grande passo rumo à socialização integral do Brasil, sobretudo em relação à desagregação da família e ao minguamento da propriedade particular [151]. E faço severas admoestações e observações, não contra o regime, mas contra o modo pelo qual este vem sendo vivido por nós. Porque, salvo as raríssimas exceções, a classe política é, entre nós, a-ideológica [152].
Como resolver a complexa e espinhosa situação de inautenticidade constitucional assim criada?
Que os Constituintes votassem uma Constituição dispondo sobre a organização política do País, segundo uma linha geral em que facilmente se poderia conseguir o consenso notório de toda a população. A parte sócio-econômica seria deixada pela própria Constituição para outra Assembléia, a ser eleita com poderes constituintes especiais para dispor sobre tal. O que lhe evitaria de atirar o País num dédalo de complicações fatais para a boa ordem, o desenvolvimento, e quiçá a soberania dele.
Era para evitar à nossa Pátria essa catástrofe por antonomásia que a TFP, em espírito de concórdia e de cooperação, dirigia esse brado de apelo e essa cordial proposta aos senhores Constituintes.
Como tal não ocorreu, o divórcio entre o País legal e o País real foi inevitável. Criou-se então uma daquelas situações históricas dramáticas, nas quais a massa da Nação saiu de dentro do Estado, e o Estado viveu vazio de conteúdo autenticamente nacional.
As correntes de esquerda conseguiram envolver a maioria conservadora, de forma a fazer prevalecer os pontos de vista delas e incluir na Constituição dispositivos que implantavam no País as Reformas Agrária e Urbana, ao mesmo tempo que abriam caminho para a Empresarial - as duas primeiras com o apoio oficial do Poder Executivo, e a terceira com claras simpatias em altas esferas políticas e publicitárias.
O livro levantava reparos a outros tantos dispositivos de capital importância, como sejam a aniquilação do matrimônio e da família legítima; prejuízos causados à multiplicação da espécie, ao livre exercício da profissão médica, à organização do ensino etc. [153].
Não se pode calcular o trabalho que me custou fazer este livro [154].
A dificuldade estava em encontrar a maneira de apresentar as coisas que levasse esse jogo a ser outro.
Começava por aí: a democracia era um conceito político, mas os constituintes queriam entendê-la como uma atitude social. Democracia seria, por exemplo, uma postura contra a discriminação racial, contra isso, contra aquilo.
Eu havia estudado Direito Constitucional e tinha sido uma das poucas matérias jurídicas que me interessaram.
E eu sabia, daquela época em que estudei esse ramo do Direito, que essas matérias sociais, segundo os melhores juristas, não devem fazer parte de uma Constituição. Porque a Constituição diz respeito só à estrutura política de um país, mais nada. As outras matérias deviam ser tratadas na legislação ordinária.
Então senti a necessidade de restaurar no livro o conceito de democracia, como também o de representatividade.
Repito: nunca havia escrito um livro que me desse tanto trabalho como esse. Quem lê o livro não faz bem idéia disso. Pensa que estava tudo arranjadinho na minha cabeça, e que eu fui pensando e escrevendo. Não é verdade [155].
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Início da campanha de divulgação do livro sobre a Constituinte no centro de São Paulo |
Sócios e cooperadores da TFP consagraram-se, durante cinco meses, a difundir a obra por mais de 240 cidades de 18 Unidades da Federação, fazendo escoar os 73 mil exemplares editados.
Ressalte-se a média recorde de 1.083 exemplares diários vendidos durante os dezenove dias de difusão intensiva na Grande São Paulo.
Finalmente, esboçou-se uma certa reação dos elementos mais conservadores no seio da Constituinte*.
* Formou-se na Constituinte um bloco de deputados que se diziam inconformados com os rumos que a mesma estava tomando, e que recebeu o nome de “Centrão”. É esclarecedor, a esse respeito, o discurso em plenário do deputado Bezerra de Melo (PMDB-CE), em 3 de dezembro de 1987, no qual dizia: “Não concordávamos com os rumos tomados pela Comissão de Sistematização da Assembleia Constituinte Nacional. E para tanto formou-se o Centrão, cuja missão dentro do Parlamento é salvar a nova Constituição das graves ameaças por que está passando” (cfr. Procurando o Centrão: Direita e Esquerda na Assembléia Nacional Constituinte 1987-88, tese de pós-graduação de Rafael Freitas, Samuel Moura e Danilo Medeiros, 2009).
Porém faltavam-lhes o ímpeto e a determinação necessários para reverter o processo descrito no livro. E o Brasil foi presenteado com uma Constituição que criaria em seguida toda a espécie de embaraços para a governabilidade do País [156].
O Brasil havia iniciado, bom grado, mau grado, uma nova etapa de sua História, na qual a caminhada para a esquerda se tornara compulsória, acelerada.
Resultou gravemente golpeada a instituição cristã da família, bem como profundamente danificadas, em muitas de suas características mais essenciais, a propriedade privada e a livre iniciativa [157].
A alvissareira abertura de ontem nos conduziu à terrível “apertura” de hoje.
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Aspecto da campanha de difusão do livro sobre a constituinte no centro de São Paulo |
Na eleição presidencial seguinte, as três primeiras grandes candidaturas foram de políticos notória e até chocantemente esquerdistas*.
* Apresentaram-se inicialmente como candidatos nessa eleição, entre outros, Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola e Mário Covas. Foi também candidato Ronaldo Caiado. Só mais tarde apareceu a candidatura Collor.
Isto explica que incontáveis brasileiros tivessem feito grise mine ou até faccia feroce diante da perspectiva de os candidatos irem sendo escolhidos dentre líderes político-partidários, por equipes estritamente político-partidárias. Tudo sob o bafejo da esquerda [158].
* * *
Aí o Sr. Ronaldo Caiado teve sua candidatura lançada pelo presidente regional da UDR paraibana (cfr. Folha de S. Paulo, 11/5/88) [159]. E foi, durante bom tempo, um "favorito", um campeão para o Grande Prêmio Presidência da República, senão de toda a mídia, pelo menos de grande parte dela.
Houve depois considerável retrocesso de alguns candidatos. E o retrocesso mais considerável foi o do Sr. Ronaldo Caiado. Segundo as pesquisas de opinião, ele estava colocado nos últimos lugares.
E as duplas de propagandistas da TFP que percorriam o interior do País confirmaram tal retrocesso, através dos contatos mantidos no próprio meio de onde se podia esperar que lhe viesse maior apoio, isto é, o ruralista.
O mito, a aura de invencibilidade jovem, jubilosa e irreversivelmente triunfante que se havia constituído em torno dele, encontrava-se dessa forma desfeita pelos fatos.
A TFP está certa de que seus numerosos alertas (sem réplica da parte do Sr. Caiado), a respeito da política suicida do "ceder para não perder" adotada pelo então presidente da UDR, contribuiu em larga medida para o desestufamento desse mito, que ia conduzindo a classe rural, talvez irreversivelmente, e com ares de vitória, abismo abaixo [160].
No imbroglio político de então, o afã de conhecer a opinião da TFP se manifestou. Dos mais variados lados se nos perguntava, com confiança tocante, qual seria o candidato mais desejável. Ou, antes, qual o menos indesejável.
Por vezes, a mesma pergunta se voltava contra nós, com certo cunho de intimação: que candidato potável a TFP tinha para propor? E, se não o tivesse, que solução ela encontrava para tirar o País da perigosa mixórdia em que parecia ir soçobrando?
Que solução apresenta então a TFP? Que o país recorra às cúpulas das grandes associações de classe? Tal proposta, a TFP não a faria. Pois, ao longo dos debates da Constituinte, as cúpulas profissionais que falaram, o fizeram quase sempre no sentido de favorecer o esquerdismo do plenário constitucional que tanto já se ia extremando neste sentido. Ou, então, se assinalaram na prática da ruinosa política do "ceder para não perder", isto é, do ceder muito, diante das esquerdas, para tentar não perder tudo... E quando não agiram assim, foi porque se calaram completamente [161].
Nesse clima despontou uma nova figura, a de Fernando Collor de Mello [162], que se apresentou como se fosse um campeão de corrida que havia entrado no páreo eleitoral.
Neto de Lindolfo Collor, político gaúcho muito saliente na era getuliana, ligado por vínculos familiares mais ou menos desfeitos, como por vínculos familiares atuais, ao grande capitalismo, ele próprio um capitalista de considerável fortuna, o nome de Fernando Collor começou a despertar em certos setores brasileiros a esperança de que viria a representar uma solução centrista, com alguma tendência à direita, para a solução da situação caótica que submergia o País.
Começava entretanto a cercá-lo uma “aura” parecida com a que há pouco havia favorecido Caiado. E a mídia projetava dele a imagem de pessoa resplandecente de otimismo, de êxitos passados e de esperanças para o futuro. E de pessoa que trazia em si uma como que promessa “evidente” de vitória.
* * *
Não era minha intenção, nem da TFP, impugnar a atitude dos que consideravam a presença de Collor, na lista dos mais cotados presidenciáveis, como representando certa distensão e certo alívio quanto à pressão das esquerdas.
Mas vi que era preciso tomar cuidado. Eu sustentava que era necessário acompanhar com atenção o que ele dizia, para ter idéia exata do voto que se iria dar.
Collor me parecia, de fato, um candidato preferível aos outros.
Mas, daí a depositar nele — como se fosse um candidato talismânico — a confiança cega, presente em certas formas de entusiasmo sugeridas por elementos das comunicações sociais, isso se me afigurava excessivo.
Esse utopismo otimista poderia marcar a atmosfera do primeiro período de governo. E acabava beneficiando prematuramente um novo Presidente de República com uma carga de confiança que ele talvez merecesse... mas que talvez não merecesse.
Meus comentários não eram anti-Collor. Eram comentários pró-Brasil. Comentários que convidavam portanto à vigilância e à atenção.
Eles não desviavam votos de Collor. Apenas procuravam atenuar fanatismos que facilmente se poderiam tornar excessivos [163].
Veio então o primeiro
turno das eleições, com Fernando Collor obtendo vantagem considerável (por
volta de 12%) sobre o segundo colocado, Luís Inácio Lula da Silva.
Em quem votar no próximo turno da eleição, de dramática importância para o País?
Eu não podia deixar sem resposta as numerosas perguntas que neste sentido me chegavam, não só dos sócios, cooperadores e correspondentes da TFP, como de bom número de simpatizantes de todo o Brasil.
Isto se tornou ainda mais premente à vista do fato de que Lula, interrogado pela Folha de S. Paulo (18/11/89) sobre se era verdade que tinha o apoio da corrente da Teologia da Libertação, respondeu que não havia nenhuma novidade nisso. E que todo mundo sabia que havia um setor progressista da Igreja que apoiava a campanha dele.
Lula terminou por dizer que Collor deveria ficar com o pessoal da direita da Igreja, e que ele ficaria com o da esquerda.
Essas declarações justificavam completamente uma tomada de posição nossa, não só entre as candidaturas Collor e Lula, como também ante a Teologia da Libertação e as CEBs.
* * *
Não era minha intenção dar à voz da TFP outro alcance senão o de um conselho fraternalmente oferecido por membros do laicato católico a membros do laicato católico, acerca do segundo turno da eleição presidencial. Redigi então um manifesto.
Eu lembrava nesse manifesto que, enquanto a TFP defendia o princípio da propriedade privada e o sistema de livre iniciativa, as CEBs eram adeptas do sistema socialista de inspiração confessadamente marxista.
E frisava que a anterior figura política de Lula, sempre marcada por uma nota esquerdista, havia se radicalizado ao longo da campanha. Resultava isto do fato de as CEBs terem tomado vulto preponderante nas fileiras do “lulismo” e do PT. CEBs nas quais o público via um caráter radicalmente esquerdista.
Em vista de tudo isto eu recomendava no manifesto, a todos os eleitores com opiniões consonantes com as da TFP, que não dessem seu voto a Lula. E que a alternativa era votar no candidato Collor.
Eu deixava bem claro que a meta da TFP não era oferecer votos a ninguém. E que ela não via na candidatura Collor senão uma contingência a ser aceita quase automaticamente pelo eleitor, quer centrista, quer direitista, pois decorria de modo inexorável da candidatura Lula.
O fato é que, depois desse comunicado, o conflito ideologizou-se, ficando Lula de um lado, e de outro Collor. E um certo anticomunismo começou a novamente se definir no Brasil* [164]
* Este manifesto foi publicado na Folha de S. Paulo, 29 de novembro de 1989, no caderno Exterior, p. A-7, sob o título Face à dramática situação do Brasil, a TFP toma atitude entre as candidaturas Collor de Mello e Lula, como também ante a Teologia da Libertação e as CEBs.
Depois de publicado esse comunicado, li na imprensa que o Procurador Geral da República em Brasília moveu um processo criminal contra a Folha de S. Paulo, na pessoa de seu diretor, Otávio Frias de Oliveira, pelo fato de o jornal ter publicado um pronunciamento a favor do Collor e contra o Lula.
Razão: a lei eleitoral considerava crime, passível de um a cinco anos de prisão, o responsável por uma entidade que não fosse um partido político, se pronunciar a favor de um candidato durante o período eleitoral.
Percebi logo que queriam processar-me a mim também. Se processassem o Frias, o processo sairia contra mim também.
Ele tinha publicado, e eu tinha escrito. Era o mesmo “crime” para quem escreveu e para quem publicou. Sem saber, eu tinha cometido esse “crime” [165].
Passou-se mais ou menos um ano [166] e no fim o tribunal criminal declarou absolvido o Sr. Frias e, com surpresa para mim, mandou-me um ofício muito gentil, comunicando-me essa absolvição e dizendo que a lei que proibia essas intervenções eleitorais já não tinha mais aplicação em vista da Nova Constituição [167].
NOTAS